”Hoje estamos discutindo a legalização das drogas - quando eu falava disso há 40 anos, isso era absolutamente inaceitável”
Um dos maiores especialistas em segurança pública e justiça no brasil - e um dos homenageados no Trip Transformadores deste ano -, o antropólogo Luiz Eduardo Soares abriu mão do conforto e da segurança dos bastidores governamentais e da academia para iluminar o submundo do crime e da polícia, arriscando com isso a própria vida. Quando subsecretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, denunciou a existência de uma “banda podre” da polícia fluminense e foi obrigado a se exilar nos Estados Unidos para evitar as ameaças de morte.
“Para que o ser humano individual seja respeitado é indispensável que nós encontremos formas de convívio coletivo e de controle do uso do poder para que poderes quaisquer, minúsculos e capilares, não se imponham violando direitos individuais”, afirma.
De volta do exílio, relatou em livros o que sabia sobre as causas e consequências da crise de segurança que vive o Brasil, um dos países mais violentos da região mais violenta do planeta, que é a América Latina. Com uma escrita cativante, trouxe a público os interesses escusos que movem os governos, a tragédia que vitima diariamente as parcelas menos favorecidas da sociedade e as forças ocultas por trás da ineficiência policial.
“Eu percebi que uma das tarefas que se impunha a mim era transmitir essa mensagem, fazer com que essa voz fosse ouvida na sua dimensão humana, afetiva. Esse é um saber que não é pontuado pela informação, mas pela empatia, pela emoção. Só a literatura, o teatro, o cinema, um documentário, seriam capazes de reconstruir essa experiência humana na sua complexidade”.
A potência da palavra ganhou alcance nacional quando dois dos livros que assina foram adaptados para o cinema e colaboraram para a criação do maior herói nacional, o Capitão Nascimento. Já integrado à tropa de elite da produção literária nacional, Soares acaba de lançar Tudo ou Nada, que conta a história de um brasileiro que integrou um grande cartel de tráfico de cocaína.
Leia a entrevista que o antropólogo deu a Trip.
Seus livros tendem a ser todos ficcionais? O Cabeça de porco não. Esse é um trabalho com MV Bill e Celso Athayde, cada um de nós escreve uma parte. Ali os relatos são todos referentes a situações verdadeiras, com alteração de nomes apenas. Elite da Tropa e Elite da Tropa 2 são ficcionais no sentido de que são estruturados como textos literários, com personagens que são construídos de uma forma literária, mas se referindo a situações reais transplantadas para espaços distintos, com outros nomes, para evitar identificação. As construções narrativas e estratégias dos relatos são literárias, mas as referências são todas reais, assim também é o Espírito santo, o outro livro. O Tudo ou nada, que é meu último livro, é um relato verdadeiro - realista, digamos assim - de uma história individual, de uma experiência biográfica existencial de um brasileiro [Ronald Soares] preso por associação ao tráfico de 2 toneladas de cocaína, que antes se dedicara a velejar e passou dez anos nos mares.
Há uma linha tênue, então, entre realidade e ficção. São histórias verdadeiras, tanto quanto nós podemos dizer que a mediação literária ou a narrativa mantém fidelidade a experiências vividas. Isso é tudo muito relativo porque nós mesmos atribuímos um significado ao que vivemos, e isso faz parte de uma invenção individual cotidiana. A literatura, por mais fiel que seja a essa primeira invenção, é uma segunda invenção. Mas as estruturas narrativas permitem uma comunicação em nível inconsciente emocional, o estabelecimento de relações de empatia, e isso agrega uma dimensão fundamental para a comunicação humana, porque os trabalhos acadêmicos, as pesquisas, as etnografias mantêm-se num certo registro. A descrição analítica, se for bem-sucedida, é capaz de reconhecer a complexidade das situações e as contradições em jogo, mesmo as não percebidas, mas deixa sempre de lado as emoções, pelo menos aquelas emoções que o texto provocaria imediatamente na relacionamento com os leitores. A literatura convoca os leitores, o inconsciente, suas emoções, eletrifica sua sensibilidade.
E essa é, também, a metodologia de criação e inspiração adotadas por você nesse último livro? Esse é o método que eu tenho utilizado também no caso do Ronald Soares, que é o biografado no Tudo ou nada. Durante os cinco anos em que nós nos encontramos e essa pesquisa foi feita eu evitei gravar ou registrar por escrito para permitir que houvesse essa troca de maneira mais fluente, mais viva. Por outro lado, se eu vou escrever, e escrever é um desafio muito especial que requer a mobilização de outras dimensões mentais e espirituais, eu acho muito importante que eu seja capaz de compartilhar um pouquinho daquela vivência que está sendo relatada na entrevista, e para isso é importante que se crie uma atmosfera empática não controlada, inclusive. Eu costumo dizer que eu não tomo notas para poder esquecer, porque só quando a gente pode esquecer o que nos foi relatado é que nós estamos confortáveis o suficiente a ponto de considerarmos essas experiências relatadas como parte da nossa própria experiência. Nós só esquecemos o que faz parte, de alguma forma, do nosso acúmulo de memória, e aquilo que a gente pode esquecer a gente pode lembrar, então esse não é o grande problema. O importante é que podendo esquecer eu posso vivenciar, e quando eu lembrar eu vou ser capaz de mobilizar também esses sentimentos que estavam presentes, provavelmente, na outra ponta, no lado de quem viveu diretamente aquelas situações. Para mim essa dimensão inconsciente, empática, afetiva, simbólica, não controlável e acima de todos os métodos é fundamental.
"Só quando a gente pode esquecer o que nos foi relatado é que estamos confortáveis a ponto de considerarmos essas experiências parte da nossa própria experiência"
Conte um pouco sobre a origem do seu processo de criação literária. Eu trabalho com entrevistas desde o final da adolescência. Eu me formei muito cedo, fiz literatura e depois antropologia e passei por muitas experiências diferentes. Fui aprendendo à minha maneira - porque isso é muito pessoal - que funcionava melhor se eu não ficasse tenso e metodicamente ligando àquela experiência a antecipações normativas, a prescrições constitucionais, a tarefas, cronogramas etc. Entendi que era importante que aquilo fluísse com todos os riscos de uma relação humana, inclusive com o risco de haver mal-entendidos, esquecimentos. Mas eu acho que acaba valendo a pena porque o que fica, fica com mais densidade.
Como se dá a relação entre a linguagem da antropologia e da sociologia, mais pragmáticas, com a da literatura, subjetiva? Há tensões, há atritos, não é fácil. Mas a precondição para que haja um convívio construtivo, respeitoso, democrático e plural é o reconhecimento das diferenças. Os discursos são extintos, os registros são outros, então aplicar a antropologia ou a sociologia à literatura é um desastre e vice-versa. Se você trabalha numa pesquisa rigorosa, academicamente orientada, apenas com os seus recursos literários, você também vai enfrentar dificuldades. O importante é que se reconheçam as especificidades, as diferenças, e dessa maneira é possível um convívio e um aproveitamento recíproco. Há linhas de tensão, mas também linhas de comunicação positiva. Sobre a estratégia narrativa e a importância da linguagem literária – inclusive para que aquela realidade que se deseja transmitir faça sentido e alcance o leitor em todas as dimensões – eu tenho um exemplo que acho importante.
Qual? Quando o Ronald Soares me fala da sua experiência na prisão em Londres, em Bangu ou na Polinter, no Rio de Janeiro, eu quis transportar os leitores não apenas para aquela cela, isso é muito simples. O objeto que eu quis compartilhar era a percepção do tempo de quem está privado de liberdade; fazê-lo entender que um segundo, um minuto, uma hora em uma cela têm um significado vivencial completamente diferente; mostrar os incômodos dos insetos, das alergias na pele, estendendo no tempo uma sensação de vulnerabilidade. Transmitir isso era para mim muito mais importante do que grandes discursos sobre o que significa a privação de liberdade ou a violência do Estado. Achava que a melhor contribuição seria falar do tempo passando na pele, dessa vivência excruciante. Isso só se faz com a literatura, é muito simples relatar isso com uma descrição, mas não produz o resultado importante que é o resultado empático.
"Eu quis compartilhar a percepção do tempo de quem está privado de liberdade; onde um segundo, um minuto, uma hora em uma cela têm um significado completamente diferente. Transmitir isso era muito mais importante do que grandes discursos sobre o que significa a privação de liberdade ou a violência do estado"
Como você vê esse otimismo, relativamente generalizado, baseado no momento de crescimento pelo qual o Brasil passa? Eu não chego a ter essa expectativa tão otimista [risos]. Quando a gente define objetivos muito ambiciosos a gente tende a se frustrar. Acho que é melhor ter um senso de modéstia e reconhecer que a nossa contribuição é diminuta; considerar que, afinal de contas, nós temos só 22 anos de experiência democrática - historicamente isso não é nada-; e que o Brasil está engatinhando no convívio democrático, mas, com todas as mazelas, contradições e tragédias, está engatinhando muito bem. Se nós contrapusermos a situação atual com a da minha geração, com todas as suas limitações por causa da ditadura militar, veremos que estamos indo longe. A sociedade brasileira mudou para melhor, houve avanços significativos do ponto de vista econômico, da distribuição de renda, da experiência democrática, mas com muitas limitações e contradições.
Quais seriam essas contradições? Eu diria – repetindo o título de um artigo meu publicado na passagem do século – que o Brasil chegou ao século 21 e ao século 20, estamos convivendo com duas temporalidades históricas distintas. Temos que resolver problemas quase atávicos e permanentes como racismo, torturas, violência do Estado, desigualdades no acesso à justiça. E por outro lado avançamos tanto em tantas áreas, podemos hoje ter uma expectativa de vida maior e mais digna; muito menos mortalidade infantil; menos fome e miséria; mais perspectivas de avanço educacional. É claro que o Brasil avançou, reconhece com mais clareza a sua dívida social e os novos desafios, que se colocam para nós hoje, com mais acuidade e espírito crítico. É evidente que estamos em outro patamar, os horizontes estão se abrindo. Inclusive o jogo de soma zero, o “fla-flu”, aquele antagonismo simplório entre nós e a ditadura era um dualismo necessário, verdadeiro naquele momento. Mas hoje nós não estamos mais confinados nessas ideologias do século 19. O veio libertário ao qual eu me associo acho que tem conquistado mais e mais legitimidade; nós podemos falar das reinvenções dos sujeitos, da liberdade individual com muito mais profundidade. Estamos discutindo a legalização das drogas, quando eu falava disso há 40 anos, isso era um anátema, era absolutamente inaceitável, e agora isso está posto na agenda do debate; podemos voltar a examinar a questão da reinvenção dos gêneros, da sexualidade etc. Tudo isso está posto para nós, não só por conta dos movimentos que se deram no interior da sociedade brasileira mas também pelos movimentos globais.
"Hoje estamos discutindo a legalização das drogas - quando eu falava disso há 40 anos, isso era absolutamente inaceitável; podemos voltar a examinar a questão da reinvenção dos gêneros, da sexualidade etc. Tudo isso está posto para nós"
E as limitações?Por outro lado nós ainda convivemos com esse racismo estrutural que nós insistimos em ignorar e mascarar; a violência, sobretudo a do Estado, continua sendo parceira de viagem, nós não sabemos como lidar com o crime e a punição. Isso tudo constitui ainda para nós um grande desafio.
Houve alguma mudança no tratamento dado à questão da tortura antes e depois da ditadura militar? A tortura era uma grande questão durante a ditadura. Eu percebi que nós ignorávamos esse problema como se fosse menor, um problema de segurança pública. Com a emergência do Estado democrático a impressão que se tinha – na opinião pública, digamos, de elite – era de que o problema simplesmente desaparecera, já que foram banidos os parâmetros oficiais das políticas de Estado. Não era verdade. A tortura que existia no Brasil antes da ditadura militar – e que foi qualificada, intensificada e redirigida porque atingia também a nós da classe média – continuou a existir depois da transição democrática. Esse fio de continuidade tem relações com grandes problemas inerciais da história brasileira como o racismo, o patrimonialismo, as desigualdades sociais etc. Era preciso considerar a sério toda essa problemática.
E em relação ao sistema prisional? Os presos eram esquecidos e continuam esquecidos, o sistema penitenciário são casas de horrores, são sucursais do inferno. Nós continuamos convivendo com isso, com a brutalidade policial letal que atinge recordes mundiais, e nós silenciamos a respeito disso sem nos darmos conta de que esse é um desafio absolutamente crucial, que sem enfrentamento não haverá democracia que mereça esse nome. Isso aconteceu no Brasil pós-ditadura, então eu comecei com colegas e setores minoritários dos movimentos sociais a focalizar essas questões, dizendo: “Olha! Segurança pública, violência, criminalidade e a forma pela qual o Estado lida com isso constituem um campo muito importante. Nós temos de ter posições democráticas a esse respeito”. Os direitos humanos têm que ser aplicados, direitos que valem para todos, inclusive para os operadores de segurança pública, os profissionais de polícia, para os que são suspeitos ou condenados, todos eles são seres humanos e devem ser destinatários do Estado democrático de direito. Essa é uma questão tão evidente, mas que permanece negligenciada.
"Os presos eram esquecidos e continuam esquecidos, o sistema penitenciário são casas de horrores, são sucursais do inferno. Nós continuamos convivendo com isso, com a brutalidade policial letal que atinge recordes mundiais, e nós silenciamos sem nos darmos conta de que esse é um desafio absolutamente crucial, que sem enfrentamento não haverá democracia que mereça esse nome."
E o papel da esquerda nesse contexto? As esquerdas – esse campo vasto no qual eu me inscrevo – continuam esquerdas titubeantes, omissas, afásicas e silenciosas em relação a isso. Ou adotam a demagogia e o populismo penal endossando o discurso de direito oportunisticamente, ou simplesmente denunciam e não sabem o que fazer, não têm propostas alternativas, não são capazes de compreender a complexidade da questão. Então essa é uma área negativa na história do Brasil. Houve uma transição democrática, mas toda a área da segurança pública, até parte da justiça criminal, permaneceu intocada pelo processo de transformação advindo da transição política. É preciso estender a transição democrática a toda essa área.
É bem o sentimento de desilusão cantada na canção “Vapor Barato”, de Jards Macalé e Waly Salomão: “Eu não acredito mais em você, com minhas calças vermelhas, meu casaco de general, cheio de anéis, vou descendo por todas as ruas, e vou tomar aquele velho navio”... Pois é! Esse é o casaco que eu nunca vesti completamente e que nunca saiu de mim, mas é o casaco de general de Macalé, de Waly Salomão. É o casaco de general da minha geração que saía num cargueiro ou punha o pé na estrada com uma perspectiva libertária, para descobrir e reinventar o mundo. Esse casaco tinha de funcionar para outras funções também. Eu acho que o grande desafio da minha vida tem sido compatibilizar esses dois lados: o lado casaco do Waly, de Gal, do Tropicalismo, do lado libertário da minha geração compromissado com a criatividade humana, e esse lado vinculado às instituições, ao Estado democrático de direito, às limitações, restrições que têm que ser observadas na vida coletiva, e como fazer com que as limitações que nós temos de tolerar, porque elas são condições do respeito aos direitos alheios, como fazer com que esses pactos que restringem sejam vividos numa perspectiva libertária e não castradora. Esse é um enorme desafio: como fazer com que a vida coletiva – que implica certas restrições, certas regras – não seja experimentada como o avesso da experiência libertária individual? Como fazer, por outro ângulo, com que a dignidade da pessoa humana seja um fim em si mesmo, e não instrumentalizada como meio para que se alcancem outros fins supostamente superiores? Quando eu ouço frases do tipo “o que importa é a nação” ou “o que importa é a humanidade”, ou a ciência, a religião, o partido, eu fico completamente indignado e perplexo! O que importa é o ser humano individual!
E como fazer para que esse ser individual seja respeitado? Para que o ser humano individual seja respeitado é indispensável que nós encontremos formas de convívio coletivo e de controle e de uso do poder para que poderes quaisquer, minúsculos e capilares não se imponham violando direitos individuais. Então é evidente que a questão política institucional é fundamental, mas sempre a serviço do ser humano individual. Não se justifica a mutilação, o desrespeito, o atropelo do ser humano individual. A causa que vale a pena é essa para mim. Isso não tem nada de individualista porque ser humano individual somos todos nós, mas esses indivíduos não se diluem num agregado. Nada mais pavoroso do que o discurso coletivista quando ele é desrespeitoso da individualidade. Por aí há muitas possibilidades de encontrarmos virtudes em tradições religiosas – que foram fundamentais na constituição da ideia do indivíduo como valor; há aí muito de contato com a tradição liberal, à qual nós devemos tanto do ponto de vista das conquistas individuais; tradições socialistas, que nos ensinaram a respeito da necessidade de pensar esse individuo do ponto de vista da universalidade; e há muito também a aproveitar dos impulsos anarquistas mais radicais que, afinal de contas, puseram o dedo nas feridas das outras tradições. Como é que nós podemos – sem doutrinarismo, sectarismo, dogmatismo – reconhecer as riquezas dessas tradições que chegam até nós? O que é que nós podemos aproveitar de cada uma sem compor um híbrido eclético, insosso e informe que não nos ajuda? Há muito do patrimônio histórico e cultural a ser valorizado, e a criatividade nossa não é contrária à riqueza desse patrimônio. Nós temos de valorizar esse legado nas suas diversidades e contradições com muito estudo, pesquisa e leitura sem abdicar do compromisso com a liberdade da criatividade.
"Não se justifica a mutilação, o desrespeito, o atropelo do ser humano individual. A causa que vale a pena é essa para mim."
Quando subsecretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, entre 1999 e 2000, você denunciou a existência de uma “banda podre” da polícia fluminense. E, depois uma polêmica em que teria defendido a atitude do cineasta João Moreira Salles, que supostamente pagava mesada ao traficante Marcinho VP, você foi demitido pelo então governador Garotinho. Essa é uma história paradigmática para mim porque ela marcou um ponto de inflexão na minha história pessoal. Eu identifiquei ali a possibilidade de uma missão, uma de forma de oferecer uma certa contribuição a nossa vida coletiva. Eu começava a minha gestão, eu era subsecretário de Segurança, depois me tornaria coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do estado do Rio de Janeiro com início em 1999. Essa experiência durou cerca de 500 dias ao todo, em 2000 eu viria a ser exonerado, mas essa experiência foi muito rica, muito interessante. Eu comecei justamente visitando comunidades para ouvir a população. A nossa ideia era suspender essas incursões bélicas nas favelas e oferecer segurança pública 24 horas, que é um serviço público ao qual todos têm direito, não só as classes médias ou bairros de elite. As comunidades não eram inimigas da segurança nem cúmplices de bandidos. Elas eram e são destinatárias dos serviços públicos.
Uma ação parecida com as que fazem as UPPs hoje? Isso que se faz nas UPPs nós fizemos no Mutirão pela Paz, exatamente com as mesmas intenções. Fui com a vice-governadora na época, Benedita da Silva, com os comandantes das polícias civil e militar e o comandante do batalhão local ouvir a comunidade. Isso era inusitado. Primeiro, aquele não era um ano eleitoral, como eles próprios disseram, estávamos começando a gestão e estávamos dispostos a ouvir e iniciar um diálogo mais franco. Então, no início, quando eu abri para as inscrições para as falas, houve um grande silêncio. Claro! O temor ainda se impunha! Depois, muita desconfiança: nós podíamos estar sendo hipócritas e manipuladores, eles tinham boas razões pra suspeitar das nossas intenções. Há todo um histórico que confirmava as piores suspeitas. Mas aos poucos foram se soltando, explicitaram a razão de suas suspeitas, e, praticamente, só mulheres falaram. A primeira que se levantou e se dispôs a dar um depoimento disse mais ou menos o seguinte: “Eu até posso dar um crédito de confiança a vocês. Mas antes de qualquer coisa vocês têm de ouvir nossas histórias, nossas experiências”. E continuou: “No dia tal meu filho foi assassinado pela polícia nessas e nessas condições”. Ela se emocionou e nós todos nos emocionamos. O depoimento era tão forte, tão impactante, que os jornalistas - havia muitos, porque aquilo era inusitado - desligaram as câmeras e as luzes em respeito àquela situação. Sobre aquela enorme emoção nós nos calamos, o silêncio se impôs de novo, até que uma senhora se levantou e, na mesma linha da primeira, trouxe sua experiência dolorosa com muita emoção: o seu sobrinho, seu vizinho, seu filho também foram assassinados pela polícia.
Só mulheres deram seus depoimentos? No final desse rosário de testemunhos dramáticos um rapaz se levantou – foi o único homem que falou. Era um negro muito bonito, forte, de uns 30 anos de idade, o que é importante destacar porque isso contrastou com a emoção com a qual ele falou. Na imagem da cultura machista esperava-se que ele fizesse um discurso muito diferente do feminino, mas ele trouxe tanto mais emoção do que as mulheres. Ele disse: “Pouco antes da virada do ano tivemos mais uma noite de terror, companheiros nossos foram mortos pela polícia de novo da mesma forma. Eu não sabia mais o que fazer. Fui tomado por uma dor muito aguda e por uma sensação terrível de impotência”. “Na ocasião”, dizia ele, “eu abandonei a cena triste de lamentação dos parentes e amigos, entrei na sede da nossa associação de moradores, abri a janela e vi que a cidade amanhecia absolutamente indiferente ao que tinha se passado. Eu não sabia como contar a nossa história, não do ponto do vista da informação mas do modo como nós sabíamos, emocionalmente, de um jeito que só quem vive essa experiência pode saber.”
Qual foi o impacto sobre você? Eu percebi, então, que uma das tarefas que se impunha a mim – e a todos que tivessem poder para isso – era transmitir essa mensagem, construir essa ponte, fazer essa mediação, fazer com que essa voz fosse ouvida na sua dimensão humana, afetiva. Esse é um saber que não é pontuado pela informação, mas pela empatia, pela emoção. Só a literatura, o teatro, o cinema, um documentário, só outros tipos de registro seriam capazes de reconstruir essa experiência humana na sua complexidade. Era importante que todo mundo compreendesse a urgência de tudo isso, sem reduzi-las a cálculos estatísticos, discursos oficiais ou opiniões ideológicas já congeladas e pré-fabricadas. Escrevendo esses livros eu tento me colocar a serviço dessa causa.
"Só a literatura, o teatro, o cinema, um documentário, seriam capazes de reconstruir essa experiência humana [prisão] na sua complexidade. Era importante que todo mundo compreendesse a urgência de tudo isso, sem reduzi-las a cálculos estatísticos, discursos oficiais ou opiniões ideológicas já congeladas e pré-fabricadas. Escrevendo esses livros eu tento me colocar a serviço dessa causa."
Qual, a seu ver, é a questão atual mais importante na área da segurança pública? As questões mais importantes na área da segurança pública da justiça criminal, em seu sentido mais amplo, são as mesmas, são aquelas que já estavam presentes para nós no Brasil antes da ditadura de 64, permaneceram ao longo da ditadura e ali se intensificaram, e que restaram para nós como legado da ditadura e continuam convivendo conosco. São os desafios mais elementares, que dizem respeito às violações dos direitos humanos. Nós temos muitos problemas na sociedade, mas nós temos exigir que o Estado, pelo menos, cumpra a Constituição, respeite os direitos humanos e se organize para fazer com que suas tarefas sejam cumpridas nos marcos ditados pelo Estado democrático de direito. Enquanto as instituições policiais desrespeitarem os direitos humanos, inclusive os dos policiais, e, principalmente, dos negros e dos mais pobres, nós não vamos chegar a lugar nenhum, não há nenhuma possibilidade de chegarmos a um estágio superior do ponto de vista do convívio coletivo pacífico.
"Enquanto as instituições policiais desrespeitarem os direitos humanos, inclusive os dos policiais, e, principalmente, dos negros e dos mais pobres, nós não vamos chegar a lugar nenhum, não há nenhuma possibilidade de chegarmos a um estágio superior do ponto de vista do convívio coletivo pacífico."
Desde quando você resolveu encarar esse tipo de militância? Não consigo me lembrar de mim antes de um certo sentimento de missão – e não significa que eu tenha cumprido –, mas eu tenho buscado ser fiel à missão. Acho que por conta da formação religiosa que tive, com jesuítas, família católica com um viés de engajamento religioso, e acho que mesmo me afastando do catolicismo nunca me afastei de que eu tinha que desempenhar algum papel a partir de alguns valores, e para isso serve a vida. Eu não estou dizendo que essa seja uma ideologia válida para todos; ela não foi objeto de uma decisão, de um cálculo ou de uma reflexão. Eu me conheci a partir desse campo, ele foi constitutivo para mim. Então, questões relativas ao ceticismo, às hesitações existenciais e à depressão, nesse contexto de falta de perspectivas, nunca estiveram presentes para mim. Essa ideia de falta de uma missão, falta de um compromisso, isso nunca se colocou para mim. Houve uma mudança nas linhas dos compromissos.
Como assim? Eu participei da resistência à ditadura militar como estudante, depois entrei para o partido comunista brasileiro – que era aonde eu encontrava mais espaço para pensar a questão democrática num contexto socialista e numa transição que não envolvesse violência. E quando se abriu a perspectiva de que eu escrevesse, procurei atender a essas possibilidades, utilizar esses espaços. Quando surgiu a oportunidade para que eu atuasse em governos, procurei aproveitá-la, sempre partindo da ideia de que havia alguma missão a ser cumprida no sentido de realização dos direitos humanos numa perspectiva não ingênua, que aproveitasse de 35 anos de vida acadêmica, de estudos e pesquisas, de modo que eu pudesse levar em conta esse aprendizado para fazer com que as lutas fossem mais bem sucedidas e tivessem mais consequências. Eu, pessoalmente, nunca fui bem sucedido do ponto de vista da ação política institucional, porque eu não aceito certos limites impostos pelas regras do jogo e acabo, então, sendo excluído ou me excluindo. Não sou um bom operador da política, eu não calculo de modo adequado de acordo com as expectativas institucionais e normativas que estão em pauta. Mas, acho que esse também é um papel que tenho que cumprir para ser fiel, afinal, às minhas convicções.