”A Luyara, uma garota de 21 anos, tem uma vida normal. A Luyara, filha da Marielle, não tem a vida que eu queria ter”
Desde o ano passado, Luyara Santos, filha da vereadora Marielle Franco, é assessora da deputada estadual Renata Souza (PSOL). Embora desde pequena estivesse acostumada a acompanhar a mãe em eventos políticos, a estudante de Educação Física não imaginava que enveredaria por esse caminho tão cedo. Até dois anos atrás.
Na noite de 14 de março de 2018 teve início uma trajetória que a jovem, hoje com 21 anos, não havia escolhido para si: representar Marielle Franco, sua mãe, que, ao ser assinada no Rio de Janeiro junto a seu motorista, Anderson Gomes, se transformou em um ícone político no Brasil e em um símbolo global da luta pelos direitos humanos. O crime segue sem solução.
Luyara estava há dois dias na casa dos avós, em Bonsucesso, na zona norte do Rio de Janeiro, onde se recuperava de uma conjuntivite, quando seu celular tocou. Do outro lado, uma amiga perguntou se estava tudo bem. Ela disse que sim. Dali a pouco, outra amiga telefonou — e estava com voz de choro. Ela achou estranho, mas não conseguiu descobrir o que estava acontecendo. O terceiro a ligar foi um ex-namorado, que falou: “Provavelmente, eu vou ser a única pessoa que vai ter coragem de falar com você, mas tenho certeza de que preciso falar”. Ele enrolou um pouco, mas ela insistiu até ele contar: “Tem uma reportagem falando que mataram a sua mãe”.
“Já tive uma crise absurda, de ficar dois dias e meio deitada na cama, sem conseguir fazer nada. Não melhorava nem com remédio”
Luyara Santos
A jovem desceu as escadas correndo ao encontro dos avós. Não demorou muito, sua tia Anielle veio com a confirmação. “Achei que poderia perder minha avó também. Ela ficou muito nervosa, começou a passar mal, estava sufocando. Fiquei sem reação, até que gritei umas três vezes para ela: ‘Pelo amor de Deus, eu não posso perder vocês duas no mesmo dia!’. Aí acho que deu um choque e ela se acalmou um pouco”, lembra Luyara.
Pessoas próximas foram chegando. O ex-marido de Anielle veio e foi com ela ao local do crime. Aos poucos, quando a tia voltou para casa, todos foram indo embora e a família foi tentar descansar para lidar com as burocracias do dia seguinte.
Na época, Luyara vivia com a mãe e Mônica Benício, sua companheira, na Tijuca, também na zona norte do Rio, para onde tinham se mudado no ano anterior. Mas ela, sua tia e sua prima estavam com conjuntivite e foram para a casa de seus avós, onde ela vive hoje.
Naquele dia, Anderson tinha ido levar um colírio para ela — o remédio estava em falta na cidade. Ela estava fazendo transição capilar (passando pelo processo para assumir o cabelo natural) e a mãe havia enviado uma matéria sobre o tema, com a frase: ‘Pra gente nunca esquecer que a gente tem que cuidar da nossa coroa, que é o nosso cabelo’. Foi a última mensagem que recebeu de Marielle.
Uma dura sequência
O que se seguiu à morte brutal de Marielle foi um turbilhão. Pouco antes, a jovem tinha começado a fazer terapia, por insistência da mãe. Mas parou alguns meses depois, por não segurar a onda de remexer as memórias de um trauma há muito guardado: um estupro sofrido por Luyara aos 15 anos.
“Só consegui falar para a minha mãe um ano depois”, ela recorda. “Eu ficava com um cara e era virgem. Ele queria, e eu: ‘Não, não vai acontecer.’ Um dia, ele me segurou… Depois a gente cortou total o contato, até com os amigos que a gente tinha em comum eu cortei. Não contei para ninguém”, diz.
No período de um ano depois da violência sofrida, ela engordou 30 quilos. Mais tarde, em tratamento psiquiátrico, se daria conta de que havia desenvolvido compulsão alimentar. A história ficou escondida no fundo de sua alma até que a mãe a chamou para ver o clipe que Lady Gaga tinha acabado de lançar, “Til It Happens to You”.
“É uma música que, eu soube depois, na tradução diz: ‘Até que aconteça com você, você não sabe como é’. O vídeo tratava de vários casos fictícios [de agressão sexual], mas um era muito parecido e, na hora, eu desabei. Chorava, chorava, chorava, soluçava. Ela dizia: ‘O que que aconteceu?’. Eu não conseguia falar. Até que uma hora ela virou para mim: ‘Isso aconteceu com você?’. Aí contei para ela”, revela.
Primeiro, Marielle ficou em estado de choque; depois, preocupada com a filha. E quis saber o autor da violência, para ir atrás dele. “Eu falei: ‘Cara, não faz isso, não, por favor! Já passou’. Eu tinha 15 anos e ele era bem mais velho. Na época, eu tinha bloqueado tudo. A minha cabeça já tinha apagado completamente. Estava tudo guardado. Eu tinha a feição dele na minha mente. Mas, quando passava um conhecido, eu entrava em pânico, começava a olhar para o lado, ficar nervosa. Ela insistia: ‘Não, você tem que lembrar.’ Conversamos de novo. Ela: ‘Tem certeza de que não lembra?’. Eu: ‘Deixa essa história para lá, já estou mal o suficiente’”, descreve Luyara.
“Ela é tão presente energeticamente que tem dia que acho que tudo é sonho, que vou acordar e ela vai estar aqui do meu lado”
Luyara Santos
Ela já tinha sido diagnosticada com depressão em 2016. Com a morte brutal da mãe, vieram também a ansiedade e as crises de pânico. “Já tive uma crise absurda, de ficar dois dias e meio deitada na cama, sem conseguir fazer nada. Não melhorava nem com remédio.
Crise de choro, pânico, altos e baixos gerais. Existem dias melhores, em que eu consigo colocar uma máscara no rosto e ir para a luta, e existem dias de realidade mesmo: quadro, foto, a tatuagem (ela fez um desenho do rosto da mãe no braço), tudo que mostra a realidade, tem dia que aparece. Parece que ela vai entrar ali e fazer: ‘Surpresa, estou de volta!’. Ela é tão presente energeticamente que tem dia que acho que tudo é sonho, que vou dormir e beleza. Vou acordar e ela vai estar aqui do meu lado”, desabafa.
Depois do crime, Luyara foi morar com os avós. Ela já tinha vivido essa experiência quando era pequena. Marielle e o primeiro marido, Glauco dos Santos, foram morar com os pais da vereadora quando a filha deles tinha dois anos de idade: Marielle havia retomado os estudos, e a ajuda de dona Marinete para cuidar da filha era essencial para que isso acontecesse.
Quando eles se mudaram para a casa onde vivem até hoje, em Bonsucesso, todos foram junto. O casal se separou quando a filha tinha quatro anos, mas Marielle e a filha continuaram lá até ela se casar novamente, com Eduardo Alves (que foi chefe de gabinete de Marcelo Freixo). Luyara conta que seu relacionamento com o pai durante muito tempo foi “conturbado”. “Mas hoje ele tenta recuperar o tempo perdido, é tranquilo, a gente tem uma relação boa”, afirma.
Marielle presente
Atualmente, ela divide seu tempo entre a faculdade de educação física, o trabalho na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e o Instituto Marielle Franco, comandado por ela, sua tia e seus avós, Marinete e Antônio, que teve sua sede inaugurada no em 1º de março deste ano.
Conhece a dinâmica na política há um tempo (“Quando minha mãe começa a trabalhar com o Freixo, eu tinha uns 9 anos”, observa) e se sente acolhida no gabinete de Renata Souza — que foi assessora de Marielle e é considerada uma de suas “sementes”. Antes de começar a trabalhar lá, aliás, houve uma conversa para que os colegas tivessem tato ao falar da vereadora na presença de Luyara.
“O pior disso tudo é que o meu luto não é interno, é um luto que todo mundo sabe. Na porta da UERJ, quando fez um ano, fizeram um estêncil dela enorme, gigantesco e eu passo por ele todo dia. Quando vou ao banheiro, tem escrito ‘Marielle presente’; Eu faço matérias de Pedagogia e Educação, todo lugar tem. Aí, quando eu entro no trabalho, tem a placa… É muito difícil, mas a gente vai vivendo, né?”, resigna-se.
Ela conta que não se imaginava trabalhando com política quando recebeu o convite de Renata para integrar sua equipe. “Depois do que aconteceu, eu pensei: ‘Cara, nunca mais eu vou me envolver com política.’ Mas estar só na faculdade não estava me fazendo muito bem. Quando eu não estava lá, estava em casa e aí, mente vazia, oficina do diabo. Eu estava muito alienada. Aí, quando ela me fez a proposta, pensei com calma, conversei com a Renata várias vezes, com minha avó, minha tia, todo mundo até decidir ocupar um pouco a mente com uma parada que eu gosto”, diz.
“O pior disso tudo é que o meu luto não é interno, é um luto que todo mundo sabe”
Luyara Santos
Apesar de estar feliz com a experiência, ela jura que não há a menor possibilidade de se candidatar a algum cargo. “Sem condições. Isso eu tenho bem claro na cabeça. Mas acho que, na conjuntura que a gente vive, hoje eu quero conseguir atrelar as duas coisas, projetos sociais, trabalhar na Secretaria de Esporte e Lazer, tentar puxar mais para a minha área mesmo, e conseguir ajudar outras pessoas com a parada em que eu estou me formando e com que eu sempre quis trabalhar, que é Educação Física”, explica Luyara.
Ela muda de semblante e fica séria quando perguntada sobre o sobre o que espera da investigação do assassinato de sua mãe e de Anderson, já que a polícia até hoje não encontrou o mandante do crime. “Quero que a justiça seja feita. Tentar entender o porquê. Acho que isso só mostra o quanto nossa democracia é falha”, critica. “No dia em que prenderam os caras (Ronnie Lessa e Elcio de Queiroz, apontados como responsáveis pela morte da vereadora e do motorista), eu estava na faculdade e lá tem uma TV. Quando eu vi, estava a foto (de Marielle), e eu: ‘Que porra é essa?’. E aí começaram os telefonemas”, lembra.
Ao ser questionada se acha sua vida normal, ela devolve a indagação. “O que seria normal para você?”, manda, para em seguida fazer uma reflexão: “Eu acho que sim, eu tenho uma rotina de uma menina de 21 e uma vida normal, em certo sentido: trabalho, estudo, tenho uma vida social relativamente ativa. Mas as outras coisas que vieram depois, dar entrevista, ‘vamos marcar onde você quer tirar a foto’, ‘a gente quer fazer um filme sobre sua mãe’, ‘tem que receber um prêmio’ ou até ‘a gente só quer a presença de vocês aqui pois vocês estarem aqui é importante’... Enfim, acho que a Luyara, garota de 21 anos, tem uma vida normal. A Luyara, filha da Marielle, não tem a vida que eu queria”.
Créditos
Imagem principal: Caio Oliveira / Divulgação
Caio Oliveira