Para a nutricionista Natália Vignoli, aceitar os deslizes do isolamento pode ajudar a construir uma relação mais saudável com a comida e substituir a culpa pelo prazer
Em meio às milhares de aulas de ioga, receitas fitness e corpos de biquíni que estão povoando nossas timelines de forma exaustiva durante a quarentena, outro comportamento tem se intensificado: o descontrole na hora de se alimentar. Se para algumas pessoas já era difícil comer de forma equilibrada em uma situação normal, agora, que enfrentamos todas as restrições e ansiedades que acompanham uma pandemia, torna-se ainda mais desafiador lidar com a tentação de dar mais uma passadinha na cozinha e comer uma caixa inteira de chocolates. Conversamos com a nutricionista Natália G. Vignoli, que segue uma linha de nutrição comportamental, para entender os principais desafios de manter uma relação saudável com a alimentação durante esse período.
É normal comer mais quando estamos em casa e enfrentando todas essas ansiedades?
Natália Vignoli. Estamos privados da possibilidade de ir e vir, não podemos encontrar as pessoas que amamos, vivemos inseguranças em relação a dinheiro e trabalho, precisamos dar conta da casa e reaprender a conciliar a vida familiar e profissional e acaba que a alimentação vira uma das únicas fontes de prazer. É absolutamente normal, portanto, recorrer à comida para encontrar alguma satisfação.
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Como diferenciar essa vontade natural de comer mais e cometer alguns exageros de um quadro de compulsão alimentar? Muita gente entende a compulsão alimentar de uma maneira equivocada. Quando falamos em compulsão, estamos falando de uma doença psiquiátrica e não de alguns exageros. As pessoas que estão comendo mais nessa fase não têm, necessariamente, esse diagnóstico. A maioria só está ansiosa. Quem sofre de compulsão alimentar come descontroladamente, em um volume e em uma velocidade maiores do que qualquer pessoa comeria, até se sentir fisicamente mal. Não estamos falando de sentar em frente à TV e comer uma barra inteira de chocolate, mas de abrir a geladeira e comer feijão gelado misturado com chantilly, leite condensado e o que mais encontrar pela frente. É um quadro muito mais sério. A pessoa que tem esse comportamento busca entorpecer um sentimento ruim por meio da comida, mas depois se sente ainda pior, com muita culpa.
Por que é tão difícil ter uma relação mais prazerosa com a comida? Sem se sentir tão mal por cometer um exagero ou outro de vez em quando e sem desenvolver um quadro mais sério, como esse que você descreveu? Há várias explicações. A propagação de padrões de beleza irreais é uma delas, mas acho que a principal é que as pessoas esqueceram que a comida não serve apenas para nutrir. Ela também serve para dar prazer, perpetuar uma cultura, nos fazer socializar. Tanto é assim que a primeira coisa que fazemos ao nascer é buscar alimento e, enquanto mamamos, produzimos o hormônio ocitocina, que é o hormônio do amor. Mas, de uns tempos para cá, descaracterizamos esses e outros aspectos da alimentação. Passamos a falar muito em dieta, a adotar cardápios restritivos e a sentir culpa por gostar de comer. O problema é que quanto mais negamos que comer é um prazer, mais construímos uma relação ruim com essa parte tão necessária quanto gostosa das nossas vidas.
Acontece o mesmo com o sexo, que também é um ato prazeroso e necessário para a perpetuação da espécie humana, mas desperta muita culpa… É verdade. Mas já percebeu como, de uns tempos para cá, passamos a falar mais abertamente sobre esse assunto? O mesmo não acontece com a comida. Podemos sentar com amigas em um restaurante e falar explicitamente sobre nossas preferências sexuais, mas na hora de pedir uma sobremesa, a maioria das mulheres ainda se sentirá culpada e constrangida, como se estivesse cometendo um pecado. É um comportamento muito nocivo e é por isso que há cada vez mais pessoas obesas no mundo. Não dá para ter uma relação saudável com a comida pensando e agindo dessa forma.
A pressão para ser fitness, que tem se intensificado neste período com incontáveis aulas, receitas e manuais para a vida saudável tem contribuído para que algumas pessoas se sintam pior em relação a si mesmas? Existem pesquisas que mostram que 15 minutos no Instagram são capazes de contribuir negativamente para a autoestima, o sentimento de fracasso e a culpa de uma pessoa. Claro que isso vai depender de quem você segue, por isso recomendo a meus pacientes que façam um unfollow terapêutico, deixando de seguir quem promove um estilo de vida e um padrão de beleza irreais. Do contrário, a base de comparação só nos prejudica. E, principalmente agora, quando temos que enfrentar tantos desafios, sentir culpa por não ter tempo de fazer uma aula de funcional não vai ajudar. Melhor investir sua energia em um outro movimento, que também tem ganhado força nas redes durante esse período, que é o da redescoberta do prazer de cozinhar a sua própria comida, de sentar à mesa e de estar bem com a própria imagem.
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É provável que pessoas que não tinham uma relação ruim com a comida passem, por causa dessa experiência que estamos vivendo, a desenvolver algo assim? Como evitar que isso aconteça? É um risco. O que costuma acontecer é termos episódios de exagero, nos desesperarmos, iniciarmos uma dieta restritiva, fugirmos dessa dieta para comer tudo o que era proibido, engordarmos novamente, buscar a dieta e ir vivendo esse ciclo eterno de despedidas e exageros. Eu sugiro que a gente evite restrições, que busque ter mais compaixão com a gente mesmo, mais paciência, a prestar atenção no que estamos comendo (sem fazer isso em frente à TV, por exemplo) e a praticar atividade física visando o bem-estar e a saúde. Outra coisa muito importante é aprender a perceber os sentimentos. Será que você precisa mesmo comer ou só precisa chorar?
Como você definiria uma relação equilibrada com a alimentação? É mesmo possível alcançar esse tal equilíbrio ou é mais uma utopia? Para mim, o equilíbrio existe quando você entende que é normal exagerar de vez em quando, que comer alguns salgadinhos e um pedaço de bolo em uma festa de criança é mais saudável do que levar uma marmita de brócolis e que o seu corpo não precisa ser igual ao de ninguém. Não acho que isso seja utópico. O que é utópico é achar que você vai sempre amar o seu corpo ou que em 100% das vezes que estiver triste vai conseguir evitar descontar essa tristeza em um pote de sorvete. Claro que essa não pode ser sua única ferramenta para lidar com os sentimentos, mas entender que isso acontece, e que é normal engordar um pouco nessa quarentena também é viver em equilíbrio.