Cocô e transplante de bactérias

por Lygia da Veiga Pereira

A estratégia pouco convencional já salvou a vida de centenas de pessoas com uma forma gravíssima de diarreia

Hoje falo de uma nova forma de transplante, que foi usada para tratar obesidade em camundongos (não estamos sozinhos… na obesidade). A ideia era substituir uma população de bactérias “maléficas” por outra benéfica. E de onde tiramos a população benéfica? Do sistema digestivo. Mas de onde exatamente? Do cocô – que aqui vou chamar de fezes para manter o ar científico.

Sim, o aparentemente milagroso transplante de bactérias que emagreceu os camundongos é feito através do transplante de fezes cheias de bactérias benéficas. Na prática, as fezes de um doador saudável são coletadas, diluídas em uma solução de água e sais, e a solução contendo os trilhões de bactérias saudáveis é infundida no intestino de outro paciente por uma sonda que entra pelo nariz ou boca e vai até o início do intestino.

E aí, desanimou?

Pois não desanime. A estratégia pouco convencional já salvou a vida de algumas centenas de pessoas com uma forma gravíssima de diarreia, causada pela infecção por uma bactéria chamada Clostridium difficile (para os íntimos, C. difficile).  Quando a C. difficile se vê em um intestino onde a população natural de bactérias “boas” foi destruída (em geral por causa do uso de altas doses de antibióticos), ela prolifera e toma conta daquele órgão. E isso faz mal porque a bactéria produz toxinas que causam diarreias graves, causando a morte de 14 mil pessoas por ano só nos Estados Unidos. Pra complicar, 35% dos pacientes com infecção por C.difficile não respondem ao tratamento com antibióticos.

Ora, se essa peste só conquistou o intestino porque a população saudável de bactérias foi dizimada pelo uso excessivo de antibióticos, que tal restaurarmos aquela microbiota (conjunto de microorganismos importantes para a reciclagem de nutrientes) original? Quem sabe esse exército do bem não consiga derrotar a C. difficile e reconquistar o território do intestino?

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O primeiro transplante de fezes, ou transplante de microbiota intestinal em humanos para o tratamento de infecção por C. difficile data de 1958, e desde então mais de 300 pessoas já foram submetidas ao procedimento. Nesses mais de 50 anos de relatos do transplante, uma série de variações no método foi utilizada, seja na quantidade de fezes, no volume de solução infundida no paciente, ou na forma de infusão (por baixo ou por cima).  Mas o impressionante é que a média de sucesso para o tratamento da infecção por C. difficile é de 92%.

Em 2013, um trabalho publicado na prestigiosa revista New England Journal of Medicine descreveu um estudo comparando o tratamento dessa diarreia mortal com transplante versus tratamento convencional com antibióticos: o transplante de cocô resolveu 81% dos casos, enquanto que o antibiótico só curou 31% dos pacientes.

Apesar de efetivo, o método pode ser aperfeiçoado. Daqui a pouco, em vez de coletadas nas fezes, essas populações de bactérias benéficas serão produzidas em laboratórios, e transplantadas nos pacientes em forma, por exemplo, de uma pílula, ou mesmo um supositório. Aliás, esse é o princípio dos probióticos, vendidos em lojas de suplementos alimentares.

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