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A guerra e a paz de Black Alien

por Ronaldo Bressane
Trip #260

Ascensão, queda e renascimento de Black Alien, o rapper que começou no Planet Hemp, perdeu seu parceiro e melhor amigo, teve duas overdoses, mas se levantou com determinação

Gustavo está com fome: puxa a pimenta, joga farofa no pretinho e destrincha sua feijuca sem miséria. Nem sempre foi assim. "Estou voltando a sentir o gosto da comida", conta, no PF em frente ao lugar em que conversamos, um de seus QGs em São Paulo, a Matilha Cultural. Vivendo no subúrbio paulistano de Granja Viana, o são-gonçalense Gustavo de Almeida Ribeiro, 44 anos, a.k.a Black Alien, só cruza os 36 quilômetros até o centro de São Paulo se for a trabalho. Fugiu pro mato justamente para retomar o apetite. Anos atrás mal comia direito – o ritmo do seu flow era ditado pela trinca álcool, cocaína e balada.

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Tinha sumido na fumaça o rapper que despontou no estrelado Planet Hemp e se consolidou como um dos principais nomes do hip-hop com Babylon By Gus Vol. 1 – O ano do macaco, em 2004. Em 2010 a depressão bateu forte ao ecoar a morte do parça SpeedFreaks. Dali em diante seu skate, rolê de todas as horas, só desceu ladeira abaixo, no embalo da drogadição. Até que Gustavo resolveu se internar para um rehab: foi lá que nasceu Babylon By Gus Vol. 2 – No princípio era o verbo, financiado por um crowdfunding. "Foi um compromisso que assumi com o meu público." O elogiado álbum lançado em 2015 simboliza a transição do rapper vida loka para o mundo sóbrio. "Sóbrio, mas não santo", sorri Mister Niterói, finalizando a carne-seca com um suco de limão. Menos azedo, mas mantendo o discurso duro, Black Alien pede um café preto. A fome agora é de verbo.

Hoje faz 12 anos que você fez seu primeiro álbum, O ano do macaco. Voltamos agora a outro ano do macaco no horóscopo chinês. Como você percebe esse ciclo? Eu era um balão inflado flutuando por sobre tudo sem ver nada. Não lia, escrevi pouco, me diverti pouco, trabalhei pouco. Agora estou dialogando de verdade. Eu não ia ao banco, cara. Pegava o dinheiro, dava na mão da namorada, dos amigos, da mãe. Vivia a vida do rock’n’roll. Mulheres, drogas, rap. Quando lancei o Vol. 1 não estava preparado pra ver como o disco atingiu o coração das pessoas. Fiquei assustado: recebia santinhos, patuás, flores, imagens... Comecei a ir pro lado mais sombrio da drogadição. Por isso, por incrível que pareça, hoje eu vejo beleza até em uma fila de banco [risos].

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Você era dependente de quê? Álcool e cocaína. Não comia. Fumava maconha só pra dormir. E às vezes era um tiro pela culatra: a maconha dava ansiedade e me fazia ter vontade de cheirar. Então ficava numas de fuma e dorme; acorda, cheira e bebe... e não comia, porque tinha muito refluxo. E a química é tão perversa que, quando você acha que vai morrer, dá um teco e sobrevive. Tive duas overdoses, em 1999 e 2013. Microderrames... minha fala embolou. Felizmente voltei a treinar o flow no tratamento fechado. Era vassoura, corrida, caminhada, limpeza, tudo pra voltar a treinar o meu flow... são muitas sílabas por minuto.

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Qual era a sua rotina nesses seis meses de clínica? Disciplina forçada.
E Deus não seria o suficiente pra eu cumprir com aquilo. Você tem que ter metas. Falava pro terapeuta: "Pra semana que vem eu quero ler A arte da guerra, parar de fumar, fazer exercício, arrumar minha cama e chegar no horário". Semana seguinte ele perguntava: "Conseguiu?". Eu dizia que sim. Agora imagine uma terapia com 20 doidaraços, todo mundo mentiroso – e inocente. Se eu fumasse escondido e o companheiro visse, dedurava.  Daí tive a ideia do crowdfunding. A campanha terminou em dezembro e em janeiro me internei. As pessoas acreditaram em mim num momento em que nem eu acreditava, e isso me fez acreditar. Com os R$ 50 mil gravei o Vol. 2.

Você teve depressão também? Quando o Speed morreu. Aquele lance de acordar e já querer dormir. Não tomar banho, não escovar os dentes, comer pouco. Eu sou um sobrevivente.

“Não quero voltar pra onde eu estava. Tocar o foda-se é fácil”
Black Alien

Mesmo fora do rap, um cidadão chegar aos 40 é um sobrevivente: sobreviveu à juventude. Você acha que pode tudo. Perdi amigos em mar, em briga, em tiroteio, escalando, em idiotice... O rap é arte, é rock, é punk, a gente acha que o mundo é nosso, não leva desaforo pra casa, todo mundo segura a sua opinião sem rede de proteção nem colete à prova de bala. E o rap é mais novo que eu. Pensadores livres da minha idade, Chuck D, NAS, Eminem, Biggie, Tupac, todos de 40, são caras que cresci vendo sendo presos, adoecendo, tretando, morrendo. Por isso me sinto começando de novo. Agradeço por estar aqui vivo pra ver as coisas de outra forma. Ainda nem cheguei na melhor fase.

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Como é sua rotina hoje? Tô no muay thai agora, quatro vezes por semana. Gosto muito do sol, tem uma música minha que fala em "sol maior". A vitamina D é antidepressiva. Vou dormir umas 2 horas, acordo às 8 horas, checo mensagem, dou uma olhada rápida na rede social, sem ficar muito ligado se deu muito like ou não nem me preocupar se nasceu um novo urso panda na Rússia [risos], porque ficar muito tempo na internet é foda. Dou um beijo no cachorro, no gato, tomo café, vou treinar. Almoço, volto, compromissos do trabalho e na rua. Tento reservar um horário diário pra escrever um pouco. De noite leio. Acabei de ler a bio do Anthony Kiedis e agora vou atacar a do Eric Clapton. São histórias inspiradoras, de pessoas que passaram por coisas semelhantes.

Está em São Paulo desde quando? Me mudei pra São Paulo em 2013. Já morei aqui algumas vezes, de 1999 a 2003, de 2006 a 2010. Gosto muito de São Paulo. Antes de ir pra Granja morava na Vila Madalena. Também morei no Itaim, no Centro, em Santo Amaro. Mas tenho uma memória afetiva da Granja Viana. O disco Na face, com o Speed, foi gravado lá. Recebi Chorão, Herbert, Xis, Max BO, Rho$$i, Otto, Tolerância Zero, foram meses de muita alegria. Tô casado lá, tem árvores, natureza, ninguém toca na minha porta pra me levar pra biqueira. Tô sem o meu amigo, mas respiro um pouco do mesmo ar.

O que de fato rolou com o Speed? Cara, prefiro não... o buraco é mais embaixo. O cara foi confundido na favela. E aí foi isso... [Silêncio.] Muita gente demorou pra se levantar depois desse baque. Eu tava compondo o Vol. 2 pra lançar em 2010. Só estou superando essa história agora. Conheci o rap por causa do Speed. Digo, eu mostrei a ele o rap, mas foi ele quem me ensinou como fazer.

E a ganja? Maconha veio e foi. Na recaída foi importante pra brecar o pó. Não tenho problema nenhum com a planta. De todos os alteradores do sistema nervoso, é o que mais me agrada. Mas não consigo ler: fico vendo TV demais. "Sem maryjane pra mim, se não dá errado enfim", canto no disco. Acho que os jovens estão fumando demais e estudando de menos. Já me chamaram pra Marcha da Maconha várias vezes, mas no momento não é a minha preocupação.

Como é aturar a onda sóbrio? Cara, não quero voltar pra onde eu estava. Tocar o foda-se é fácil. Todo dia tenho que pensar que não posso beber. Tem um envelope chamado "Estratégias contra mim mesmo" que deixo em casa e na casa de amigos, com instruções caso aconteça uma recaída. É um perigo. Aí que vem a overdose e a morte. Porque você está limpo, não aguenta a retomada. Tô adorando café agora. Suco, mate e comer, porque parei de fumar. O gás voltou pra cantar, pra sexo... Essas coisas estão me dando prazer. O mundo bebe na minha cara, né? Tenho que aguentar. Mas não sou o sóbrio chato, não virei santo nem otário. Como meu trabalho é balada, fico ligado. Chego cedo e saio cedo.

Acredita em sorte? Sorte existe. Falta de sorte também. A gente tem que ajudar a sorte. Não é sempre que as coisas viram. Agora não reclamo mais. Se não virou nessa, vira na próxima. Reclamar faz mal pra saúde e me faz perder tempo. Me considero um cara de sorte: estou com a maioria dos dentes na boca e vivo de contar histórias, provocar raciocínio, falar poesia e fazer música. O que foi ruim eu guardo numa gavetinha e tranco. Não deixo mais cretino estragar meu dia. Meu dia é muito mais importante. Porque, se eu voltar a ter ódio, não vou dar atenção para as pessoas. E quem me conhece sabe o quanto eu posso ser cretino... Não sou santo, sou humano.

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