por Caio Ferretti
Trip #165

O desperdício estimulou o surgimento de várias maneiras de aproveitar os restos de comida

Toda sexta-feira eles fazem tudo sempre igual. Encontram-se na hora do almoço, preparam as panelas e aguardam o momento ideal para conseguir o alimento que vai enchê-las: o fim da feira. Não que a intenção seja pagar mais barato aproveitando os descontos oferecidos pelos feirantes quando as barracas já estão prestes a ser desmontadas. Na verdade, o objetivo é não pagar absolutamente nada. E eles sabem que isso é possível. Sempre sobra muita coisa. Por isso, a comida que vai encher as panelas do grupo Ativismo ABC vem dos montes de verduras e frutas abandonados nas calçadas que teriam como destino o lixo em uma feira de Santo André, região metropolitana de São Paulo. Cenário aparentemente comum – e até compreensí­vel – se fossem pessoas que dependessem disso para comer. Mas nesse caso existe um diferencial significativo. A turma faz isso por opção, não por necessidade financeira.
Um grupo de jovens de classe média bem vestidos pegando as sobras de uma feira para almoçar é algo inusitado. Tanto que nem eles mesmos conseguem chegar a um acordo para dizer exatamente quais são os motivos que os levam a fazer isso. É simplesmente ideológico. Deixam claro que o almoço não é a única atividade do grupo, rejeitam qualquer rótulo, mas é praticamente impossível não enxergar uma relação entre o que eles fazem e o que prega o freeganismo. O termo freegan tem sido usado em várias partes do mundo (leia as reportagens sobre os adeptos do movimento nos Estados Unidos e na França nas próximas páginas) para nomear pessoas que buscam formas de sobreviver burlando ao máximo o sistema capitalista e evitando principalmente o consumo em excesso, julgado desnecessário. Isso é aplicado inclusive na alimentação, com atitudes muito seme­lhantes a do grupo Ativismo ABC. Eles podem até negar esse rótulo, mas a referência está lá, no cartaz pendurado na parede da sede onde o rango é preparado: “Sexta-feira, almoço frigão para todos”.
No Brasil, o freeganismo dá seus primeiros passos. Além de Santo André, São Paulo já tem ao menos um par de comunidades. Em comum, todas elas têm aversão à imprensa. Ao tentar estabelecer contato com seus integrantes, fomos chamados de “sexistas e capitalistas” por uma comunidade freegan no Orkut e ouvimos que nenhum freegan iria aparecer na revista porque isso “daria dinheiro para uma empresa e isso é a última coisa que queremos”. O grupo Ativismo ABC deixou que a Trip acompanhasse seu almoço frigão sem problemas, mas, claro, nada de entrevistas.

De onde sobra pra onde falta
A atividade dos membros do Ativismo do ABC está longe de significar uma solução para o excesso de desperdício no Brasil. Mas essa nem é a pretensão do grupo. Deles não, mas de algumas ONGs sim. Um relatório de 2006 da entidade da ONU responsável pelo setor de agricultura e alimentação, a FAO (Food and Agriculture Organization), baseado em dados da Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária), mostra que jogamos fora cerca de 26 mi­lhões de toneladas de alimentos por ano, o suficiente para alimentar 35 milhões de brasileiros por mês. Uma matemática que serve de motivação para organizações como o Banco de Alimentos, criado em 1999, que arrecada em média 44 toneladas de alimentos todo mês para distribuir a instituições que precisam. “O problema está na falta de consciência, na ganância dos empresários e na deficiência de políticas públicas”, aponta Luciana Quintão, fundadora da ONG e vencedora do Prêmio Trip Transformadores na categoria Alimentação. “Pode escrever aí: jogar comida no lixo é crime”, ordena.
Trabalho parecido também é feito na feira de atacados da Ceagesp (Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo), por onde passa grande parte das frutas e verduras que abastecem a capital. Somente de lá saíram, em 2007, cerca de 1 mi­lhão de quilos de alimentos para doações. Já no varejão, onde esse trabalho não é realizado, sobra para quem tem fome e mãos.

Tem pra todo mundo
Toda quarta-feira eles fazem tudo sempre igual. Encontram-se à noite, preparam os carrinhos e as sacolas e aguardam o momento ideal para conseguir a comida que vai enchê-los: o fim da feira. O objetivo também é não pagar nada, mas porque, se não for assim, não haverá comida em casa. O alvo agora são as sobras que ficaram pelo chão depois do varejão da Ceagesp, maior feira livre de São Paulo. “Se a gente for comprar verdura e fruta, aí vai faltar o gás”, explica Ireni, 49, que não quis dizer o nome completo e há 11 anos tira toda sua alimentação dos restos do varejão. “Se a gente não pega, vai pro lixo. Quer dizer, já é lixo, né? Um lixo aproveitável”, completa. De fato é aproveitá­vel. Para quem precisa, para quem faz doações e até para quem come só por ideologia. Ireni sabe bem disso. “Tem muita comida sendo desperdiçada. Dá pra todo mundo. Só tem que ter coragem pra catar.”

 

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