Na era do trabalho com causa e dos negócios com propósito, a resposta honesta é sim – mas não como você está pensando
A relação entre amor e negócios tem história. "O amor ao dinheiro, além de como meio para aproveitar a vida", disse o economista John Maynard Keynes ainda nos anos 1930, é "uma dessas propensões semicriminosas, semipatológicas, que deveriam ser displicentemente relegadas aos especialistas em doenças mentais". Oitenta anos depois, com frequência, somos levados a acreditar que vivemos tempos materialistas demais. O escritor Alain de Botton se permite discordar. Para ele, vivemos em sociedades que associam recompensas emocionais à aquisição de bens materiais. "Não são os bens materiais que nós queremos, mas as recompensas", disse ele numa palestra para o TED. "Da próxima vez que você vir alguém dirigindo uma Ferrari, não pense que esse alguém é incrivelmente ganancioso – pense só que é alguém incrivelmente vulnerável e precisando de amor. Sinta simpatia, em vez de desprezo."
Seja para condenar, como Keynes, ou para absolver, como de Botton, o ato de fazer ou criar negócios (seja como empreendedor, trabalhador e mesmo como consumidor) é associado a uma motivação financeira incontornável. Abro uma empresa para ficar milionário. Aceito um emprego em troca do salário. Compro para mostrar que estou bem de vida e merecer a admiração ligeiramente invejosa de meus pares. O elo negócios-dinheiro não foi rompido, nem será no futuro que se consegue enxergar, mas o caráter monomaníaco das trocas comerciais e relações profissionais se espatifou nos últimos anos. O movimento do consumo consciente puxou a fila, injetando ideologia na escolha de produtos e serviços. Profissionais engrossam o coro dos descontentes ao demandar, além de dinheiro, autonomia, equilíbrio e significado para fazer o seu trabalho. Agora, o círculo se fecha com o florescer de negócios com propósito.
John Mackey, cofundador da rede de varejo Whole Foods e do movimento Capitalismo Consciente, marcou época ao defender diante de analistas de mercado sua intenção de "criar uma organização baseada no amor em vez de no medo". Herb Kelleher, CEO da Southwest Airlines, a maior companhia aérea de baixo custo do mundo, foi descrito por Raj Sisodia, o principal teórico do Capitalismo Consciente, como um líder que sempre teve uma missão: manter tarifas baixas, voos divertidos e ter uma empresa construída a partir do amor. "A questão lá nunca foi dinheiro", disse Sisodia na entrevista que me concedeu para o livro Felicidade S.A. "E, no entanto, essa é a companhia aérea de maior sucesso na história."
Há outros movimentos tomando corpo à nossa volta. Um deles é o das Empresas B. Em termos conceituais, Empresa B é a que usa o poder do seu negócio para enfrentar um problema social ou ambiental. Por trás do conceito há um processo mundial de identificação, certificação e fomento de companhias com esse perfil. Sua missão é promover uma ruptura com o sistema econômico atual. Não com a intenção de combater o capitalismo – que os líderes do movimento reconhecem como o mecanismo mais bem-sucedido da história para criar e distribuir riqueza. A proposta é lançar as bases para um capitalismo diferente, protagonizado por um novo tipo de organização: as Empresas B. "Basicamente são negócios que, além de ter uma atividade econômica, de usar a lógica de mercado e de ter lucro, têm um propósito por trás", diz Julia Maggion, diretora executiva do Sistema B no Brasil. "As Empresas B mais inovadoras partem sempre de propósitos muito claros e criam produtos e serviços para atendê-los."
Trabalho e paixão
O que mudou no mundo corporativo nos últimos anos, a partir do momento em que as pessoas passaram a diminuir o ritmo e a buscar sentido no que fazem, foi a ideia de motivação. "Em conversas com determinados profissionais, muitas vezes a última coisa de que se fala é a remuneração", diz o headhunter Igor Schultz, sócio da Flow, consultoria em recolocação profissional voltada para posições de liderança. "O profissional está interessado em saber quem são os acionistas da empresa, como ela atua no mercado, que tipo de missão e de propósito ela tem." Certos executivos querem só exercer seu poder de veto a empresas de tabaco, bebidas ou notórias pelo comportamento antissocial. Outros querem, nas palavras de Schultz, "se apaixonar pela causa". Seja uma causa socioambiental relevante ou só algo que os faça vibrar. Recentemente, recrutando para firmas de materiais esportivos, Schultz viu marmanjos implorando por uma vaga por pura afinidade e ligação emocional com a marca.
No passado, quando a regra do jogo era trabalhar duro, com disciplina e não dar muito aborrecimento ao chefe, em troca de passar a vida inteira numa empresa, tinha-se um amor quase filial à companhia – que, afinal, era responsável pela sua carreira. A partir dos anos 90, com a onda de reengenharias, downsizings e cortes de níveis hierárquicos, deixou de fazer sentido acreditar na troca de lealdade por estabilidade vitalícia. A relação entre empregados e empregadores hoje é diferente. "O profissional deixou de buscar a segurança e a maximização do retorno financeiro por seu trabalho como motivadores únicos", diz Schultz. "Está buscando uma empresa pela qual consiga se apaixonar. Se apaixonar pelo que a companhia representa, pela sua causa e pelo tipo de produto ou serviço que ela oferece."
Isso é verdade, sobretudo, entre as novas gerações. "É mais marcante, esse desprendimento material nas decisões de carreira", nota Alexandre Pellaes, líder de operações da 99jobs, uma comunidade online de carreiras que conecta profissionais a empresas. É natural que seja assim, já que a geração Y surgiu num momento em que o mundo parecia mais economicamente viável. A busca por um trabalho apaixonante, porém, não é privilégio de uma faixa etária. É muito mais uma tendência global do mercado de trabalho do que uma anomalia demográfica.
"A gente está dando muita atenção para o jovem, porque ele é a força que entra no mercado, e todas as empresas o disputam", pondera Pellaes. A 99jobs fez uma pesquisa em outubro do ano passado, com cerca de 1.300 pessoas, que revelou que 60% dos trabalhadores já dizem que o propósito e a conexão com os negócios é tão ou mais importante que o salário. "Dinheiro é relevante, mas não é o fator principal de decisão como foi no passado", diz Pellaes.
Que o diga Alison Paese, um empreendedor gaúcho de 28 anos que fundou o canal de vídeos Foras de Série e vem registrando depoimentos de heróis nacionais tão distintos como Gustavo Kuerten, Bel Pesce e Washington Olivetto. Para tirar o projeto do papel, ele trocou a carreira que fazia na corretora XP Investimentos por uma empreitada de risco, movido por pura paixão pelo veículo que está construindo. "Ele é um meio de transformação. Nossa ideia é pegar projetos e pessoas bacanas que estão tomando atitudes pelo Brasil e potencializá-las", diz. "Mostrar essas ideias para todo mundo e inspirar outras pessoas a agir." Hoje são vídeos, mas há planos para uma plataforma de texto e também eventos.
O projeto foi criado dentro da InfoMoney, portal de notícias financeiras que pertence à XP, mas Paese, que já era sócio da corretora, entendeu que chegara a hora de pular fora de uma atividade na qual, potencialmente, se ganha muito dinheiro e se lançar em um projeto solo de alto risco, daqueles em que ou você arrebenta ou se arrebenta. Por quê? "É que passei a ficar infeliz com o dia a dia, já não me sentia mais tão transformador", conta ele. "O Foras de Série apareceu na minha vida, e me apaixonei... Quando vi o episódio-piloto pronto, falei: ‘Isto aqui é exatamente o que eu sou e no que acredito’." Não dava mais para pensar em finanças.
"Meu dia a dia hoje é conhecer pessoas bacanas que sempre sonhei conhecer. E os caras querem participar do projeto, não sou eu tietando e implorando para participarem", diz ele. Desde o começo, Paese sente o interesse de possíveis parceiros em sua criação. "Ao mesmo tempo em que foi uma loucura, logo vi que havia possibilidades de aquilo virar um negócio. De ganhar dinheiro", afirma.
Pergunta de dez milhões
Isso nos leva à pergunta de dez milhões de reais: "Você precisa amar o que você faz?". Steve Jobs certa vez disse: "A única forma de fazer um excelente trabalho é amar o que faz". Mas há pessoas defendendo que perseguir "o que você gosta", como meta para a carreira, é uma falácia que só criou idealização de algo que não é realmente possível. Nem todos somos fotógrafos de viagens. A maior parte das pessoas tem trabalhos duros. Seja o operário na linha de montagem, seja o contador em seu escritório. Amar o que você faz nem sempre é possível.
Nos mais variados setores da sociedade, nota-se o surgimento de um refluxo crítico da onda de discursos pró-felicidade no trabalho. O psicólogo organizacional Sigmar Malvezzi, da USP, tem associado a busca de sentido no trabalho a uma crise de valores na sociedade, com a perda de importância relativa da religião e das grandes causas nacionais. O pastor Ed René Kivitz, um líder batista, já disse, por sua vez, que tal busca "ainda está muito restrita a dilemas burgueses, daqueles que já passaram pelos dois famosos primeiros esses, sobrevivência e sucesso, e agora podem se dedicar ao terceiro, significado". Neste sentido, observou, "o significado acaba sendo um novo separador de classes, em uma sociedade em que mais gente tem dinheiro". Para esses críticos, fazer o que se ama seria uma prerrogativa de pessoas bem nascidas que podem se dar ao luxo de discutir motivação.
Liderando uma empresa cujo mote é "Faça o que você ama", Pellaes lida com tal crítica cotidianamente. "Acho positivo falar disso", diz ele. "É absolutamente necessário falar de amor quando falamos de atividade produtiva." Pellaes vê o trabalho como representação de individualidades colocadas a serviço da sociedade. Sugere, porém, cuidado com o amor romântico, constituído só de momentos felizes, idealizado no trabalho. "O problema é que as pessoas querem fazer o que amam no sentido de curtir", pondera. "Eu acho importante desafiar: ‘Qual o seu compromisso em amar algo? E em manter o amor?’. É como se apaixonar pela mesma pessoa várias vezes. Se você não quiser, não vai rolar." Quem fala que "faça o que você ama" é uma falácia, provavelmente, não está conseguindo experimentar o amor maduro.
Amor não é tudo
Um post com o título "Decidi não fazer o que eu amava. E foda-se" circulou pelas redes sociais recentemente. Publicado por Cleiton Souza na plataforma Medium, o texto resume uma trajetória profissional que começou movida à paixão pelo automobilismo e que hoje é empurrada pela competência em lidar com planilhas financeiras.
Souza conta que só se encontrou quando resolveu se dedicar para valer a lapidar seu talento profissional. "Aprendi a gostar do que eu fazia bem, que era (e é) interpretar números", escreveu ele. Melhor ainda: ele percebeu o impacto do trabalho em sua formação como indivíduo, o que não é trivial. "Quando a gente fala ‘Faça o que você ama’, pensando na carreira, a pessoa tem de enxergar o campo que a atividade produtiva dela preenche na formação da sua identidade", nota Pellaes. "Provocar essa conversa, estimular esse raciocínio, ajuda a tirar a gente da zona de conforto."