Viver com mais, muito mais

No fim das contas, o que move o mundo é a economia

Você pode adorar a seção de ecologia do jornal e se dispor a consumir com mais consciência, mas saiba que isso não vai adiantar muita coisa. No fim das contas, o que move o mundo é a economia

Você se senta à mesa de manhã e, enquanto toma uma boa xícara de café, vai folheando o jornal. Em uma página você lê que a alta do consumo está levando ao colapso a capacidade instalada de geração de energia elétrica, e que a construção de novas usinas (hidrelétricas, térmicas a carvão ou nucleares) é urgente. A matéria explica que os danos ecológicos serão inevitáveis e que, se as pessoas consumissem menos, e de maneira mais responsável, a crise seria evitada. Você então vira a página e ali adiante lê que o governo, preocupado com a queda do PIB, está reduzindo os impostos para os eletrodomésticos, a fim de que as pessoas comprem mais geladeiras, televisores e fornos de micro-ondas. Se o consumo não aumentar, diz a matéria, o desemprego aumentará e a crise poderá ser grave. Caramba, e agora? É pra gastar ou pra economizar?

De fato, poucas páginas separam, nos jornais, a seção que manda você consumir menos da seção que mostra os perigos de você fazer isso. A defesa da sustentabilidade e o incentivo ao consumo desenfreado costumam aparecer lado a lado na mídia. Mas será que na vida real eles poderiam conviver em harmonia? Existirá um equilíbrio possível? Ha-ha-ha, até parece...

Uma das características do capitalismo contemporâneo, globalizado, é que ele é avassalador. Ninguém, e nada, escapa. Nenhum país do mundo, hoje, pode dar-se ao luxo de ficar de fora dos grandes fluxos de produção e consumo em escala planetária. A reticente Coreia do Norte faz cara feia, mas hospeda, feliz da vida, fábricas da vizinha rica do sul. Às empresas é imposta uma curva de crescimento constante, medida trimestralmente. Parques e museus vivem cada vez mais de patrocínios privados.

Nesse embalo alucinante de produção e consumo, dá-se a rápida obsolescência dos produtos, que já foi programada e hoje chega a ser desejada. Ou seja, num estágio anterior do capitalismo, uma lâmpada deveria durar um número x de horas antes de queimar; em tempos de hiperconsumo, você mesmo é quem começa a olhar com desprezo para o seu iPhone perfeitamente funcional assim que a Apple anuncia o lançamento de um novo.

MONSTRO ONISCIENTE

E consumimos muito de tudo: muita comida e bebida, muita roupa e acessórios, muitos eletrônicos e gadgets, muitas viagens, muito luxo e lixo, muitas ofertas culturais, muitos pixels, muita banda larga e até mesmo muitos relacionamentos (virtuais ou reais). Olhe em volta e conclua o óbvio: nós a cada dia nos afastamos mais da possibilidade real de viver com menos.

E viver com menos é, na aparência, fácil. Afinal, se nós consumimos bem mais do que precisamos (e desperdiçamos muito), então, dizem, bastaria fechar um pouco a torneira na hora de escovar os dentes. Mas, na verdade, trata-se de um desafio quase intransponível. Porque se cada pessoa consumir, por exemplo, apenas 15% menos, a economia entra em recessão. E, para onde quer que você olhe, haverá algo ou alguém sugerindo, pedindo, implorando, facilitando, parcelando tudo para que você viva com mais. Você poderá até consumir livros e revistas que defendem a possibilidade de viver com menos, pois o capitalismo lucra até mesmo com quem é contra ele. E se você pertence àquela parcela da sociedade que só está chegando agora ao mundo do consumo, terá ainda menos motivos para querer viver com menos, e ninguém em sã consciência poderá dizer que você está errado.

Você pode adorar a seção de ecologia no jornal todas as manhãs e se dispor a consumir com mais consciência, mas saiba que isso não vai adiantar nada. No fim das contas, quem você acha que move o mundo, que instala e derruba governos? Como foi dito na campanha que elegeu o ex-presidente Clinton: “É a economia, estúpido!”. E a economia é um monstro onisciente, onipresente e onipotente que quer, desesperadamente, crescer.

*André Caramuru Aubert, 50, é historiador, editor e autor do romance A vida nas montanhas. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br
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