Violência virtual

por Carlos Nader
Trip #112

Ninguém mais aguenta a criminalidade no Brasil. Mas quanto dela é real?

Outro dia, num restaurante, eu reencontrei um colega de infância, daqueles que a gente não vê há anos. Ele estava com a esposa, daquelas que a gente ainda nem conhece. E na euforia inicial do reencontro nós resolvemos sentar à mesma mesa.

Depois de alguns minutos de convivência com o casal, ficou evidente que eles só tinham uma coisa em comum. Os dois estavam casados com a pessoa errada. Ah, não, tinha também uma outra coisa. Os dois não aguentam mais a violência do mundo de hoje.

Não é das experiências mais digestivas perceber que a violência é o único assunto que o seu ex-amigo tem não só com a mulher dele, mas com você também. Paciência. As pessoas discutem as formas e as causas da violência desde que o mundo é narrado.

E, se as formas são hoje incontáveis, as causas acabam sendo reduzidas a duas. À esquerda, a violência contemporânea é vista como o resultado da terrível desigualdade social do país. É a opinião do meu amigo. À direita, violência é fruto da falta de uma repressão mais severa. É a opinião da esposa. São explicações pacificamente aceitas. Pena que elas não resistam às perguntas mais básicas.

Quem explica o fato estatístico de que simplesmente nunca houve tanta polícia, nunca houve tanta prisão, proporcionalmente? E quem explica o fato também estatístico de que a desigualdade social é das tradições mais estáveis do país, que quase não varia desde a época em que a tripulação do Cabral encontrou a tribo de Porto Seguro?

Deve haver razão mais definitiva para o crescimento aparente da violência. Algo que explique por que Washington tem ainda mais assassinatos que São Paulo, mesmo sendo mais policiada e menos socioeconomicamente injusta. Intuo que seja algo ligado ao que realmente diferencia nossa época de qualquer outra. A vida mediada pelos meios de comunicação de massa.

Mas minha intuição é suspeita. Tão suspeita quanto a procura de uma razão só. Grandes questões costumam ter muitas respostas. Ou nenhuma. Então não vou mais pegar nenhuma vereda psicanalítica, nenhuma travessa sociológica para tentar entender a violência. Esta coluna já fez isso além da conta.

A violência é um enigma que não vai deixar de nos devorar tão cedo, e certamente não vai ser enquanto eu divido o sushi com um amigo de infância. Não é que eu queira deixar de conversar. Mas, se o tema é só uma desculpa para que a gente possa exercer um dos poucos instintos que nos fazem humanos, a comunicação, eu preferiria falar mais sobre o Zé Bonitinho. Ou sobre o Argemiro, um colega nosso que imitava o Freddie Mercury na sala de aula.

Conversa afiada 

Ninguém aqui está querendo negar o óbvio. A existência urbana no Brasil não é nenhum piquenique no Taiti. Necessita urgentemente de um saneamento básico, físico e espiritual. Só que, ainda mais que a vida nas ruas, as conversas é que andam intoxicadas pela violência. A violência virtual cresceu exponencialmente mais que a violência real.

Ainda no jantar, no intervalo entre o cafezinho e a conta, quando o papo murchou de vez, deu tempo de fazer uma reflexão rápida e rasteira. O que realmente me violenta no dia-a-dia? Cheguei à conclusão instantânea de que não é a violência estampada nos noticiários. Não é assassinato, sequestro, assalto. O que me violenta mesmo é a poluição. O individualismo automobilístico que destrói tecidos urbanos e pulmonares. A densidade desumana e desigual da população. A paisagem que não é nem suficientemente feia para ficar interessante.

É assim para quem mora em São Paulo. Para os outros, tem também a modalidade mais recente de poluição. A violência da informação. A overdose leviana de bytes diuturnamente despejados no cérebro do cidadão espectador. Mas só digo isso porque o tema de hoje é violência, e o tema de sempre é mídia.

Fui assaltado duas vezes na vida. Na primeira senti medo. Na segunda, tive pena do moleque de rua que fingia esconder um revólver embaixo da camisa rasgada. Claro que, como todo o mundo, sei de histórias escabrosas de violência física sofrida por conhecidos reais ou midiáticos, mas sei também que elas são uma minoria infinitesimal dentro do bem-estar calmo que é a maioria da existência, pelo menos da minha.

Não vou deixar usarem o medo para poluir meu espírito. Tampouco vou blindá-lo. Isso é que seria realmente violento. Então desculpem a conclusão ainda menos original que a conversa do jantar: a vida é boa. E dentro do carro, voltando para casa, no embalo dessa pieguice benigna, penso o seguinte, vou continuar dando mole para a vida, vou continuar dando chance para a paz, dentro de mim.

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