A diferença entre meter o pé na estrada segura e se aventurar de verdade
Cenas do curta Tyger, dirigido e produzido por Guilherme Marcondes, inspirado no poema “The Tyger”, de William Blake: um enorme tigre aparece misteriosamente na cidade de São Paulo e revela a realidade escondida numa noite que poderia ter sido como qualquer outra
POR NOEMI JAFFE* IMAGENS GUILHERME MARCONDES
Sou uma daquelas pessoas sobre quem muita gente diz: “Nossa, ela viaja!” – na maioria das vezes com sentido pejorativo. Entendo a pejoratividade (essa palavra não existe) atribuída a essa prática – “viajar” –, mas discordo. E muito em razão de um orgulho ideológico desta minha teimosia “viajante”. Quanto mais me criticam, mais me atenho, e com insistência cada vez maior, à minha “viagem” e passo a considerar que só depõe contra si mesmo quem diz “fulano qualquer é viajante”. Escolhi não tomar os atalhos; prefiro sempre os caminhos e, nesse sentido, quanto mais tortos e vicinais, melhor. Os críticos de quem viaja pegam no pé, na verdade, da tortuosidade, da negação da objetividade, do finalismo, de “pôr os pingos nos is”, de ir direto ao que interessa. Mas o que interessa? Os meios sempre me interessaram muito mais do que os fins, e minha visão ética da vida é que os fins são necessariamente uma conseqüência dos meios, senão eles não têm a menor importância nem tampouco legitimidade. E, se percorri os meios, como quer que eles tenham sido, com dignidade e prazer (mesmo com todas as dores que o prazer implica), os fins serão dignos também, ou talvez nem cheguem a existir, o que, nesse caso, não importa. Os fins terão sido os meios. É assim que entendo a idéia de “viajar” e é por isso que me orgulho de ser uma pessoa “viajante”.
OUTSIDERISMO
Tenho epifanias até indo ao supermercado; ainda sei me espantar com o espantoso, lembrando o que diz Modesto Carone sobre Kafka (um “viajante”, segundo os padrões modernos): “O espantoso é que o espantoso não espanta mais”. Mas, apesar de segura dessa escolha como “viajandona”, ainda preciso de companhias para não me sentir tão só. Sim, porque não é fácil ser assim. Assumir que se é uma pessoa que “viaja” implica a aceitação da solidão, do “outsiderismo” que acompanha a “viagem”. É por isso que me consolo muito nas boas companhias de outros “viajantes” históricos e bem mais interessantes. Emily Dickinson, por exemplo:
O “pedigree” do mel
Não interessa à abelha.
Um trevo para ela –
Em qualquer hora do dia –
É aristocracia.
É a idéia dos meios e dos fins. Ou então:
Eu sou Ninguém. E você?
É ninguém também?
Formamos par, hein? Segredo –
Ou mandam-nos pro degredo.
Que enfadonho ser alguém!
Tão público como o sapo
Coaxando seu nome, dia vai, dia vem
Para um boquiaberto charco.
Assim, cotidianamente, fazemos em silêncio pares com outros ninguéns. Ou então William Blake, que, ainda antes de Nietzsche, compreendeu que era necessário subverter o cristianismo por dentro para que ele deixasse de se tornar instrumento institucional de poder e passasse a ser uma forma de libertação.
“O espantoso é que o espantoso não espanta mais” (Modesto Carone)
Blake trocou o servilismo pela revolta e mudou o símbolo do cristianismo do carneiro para o tigre. Para Blake, o corpo, e não a alma, é que representa a fonte da energia primitiva, dos impulsos e da criação, sempre, entretanto, em equilíbrio com o poder produtivo da razão.
Assim, vários de seus “Provérbios do inferno”, do casamento do céu e do inferno, adulteram a moral tradicional e propõem exatamente o contrário do senso comum, maior e mais poderoso instrumento dos “não-viajantes”: A Eternidade anda apaixonada pelas produções do tempo; Se o louco persistisse em sua loucura, acabaria se tornando sábio; A raposa condena a armadilha, não a si própria; A cisterna contém; a fonte derrama; Nunca se sabe o que é suficiente até que se saiba o que é mais que suficiente; Ouve a reprovação do tolo! É um elogio soberano!; O Progresso constrói estradas retas; mas as estradas tortuosas, sem o Progresso, são estradas da Genialidade.
MAS PRA QUE SERVE ISSO?
Uma das associações mais temidas e, portanto, mais criticadas, pelos detratores dos “viajantes”, é que quem “viaja” acaba se tornando um “loser” (outra noção assustadora). É claro, quem “viaja” e se preocupa mais com os meios do que com os fins dificilmente vai se tornar um “winner”, já que estes só têm em mente justamente os fins de tudo. A pergunta de um “winner” é sempre: “Mas para que serve isso?”. Ao que um “viajante” invariavelmente responde que não sabe, mas que aquilo é bonito, ou gostoso, ou mesmo difícil, mas interessante em e por si mesmo. Assim, um dos textos mais representativos para nós, “viajantes”, pode ser a “Estética da abdicação”, de Fernando Pessoa:
Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido. Por isso toda a vitória é uma grosseria. Os vencedores perdem sempre as qualidades de desalento com o presente que os levaram à luta que lhes deu a vitória. Ficam satisfeitos, e satisfeito só pode estar aquele que se conforma. Vence só quem nunca consegue. Só é forte quem desanima sempre.
É claro que muitos vão dizer que a crítica aos “winners” é a racionalização dos “losers”. Não vencem, então encontram uma forma de dar sentido ao seu fracasso. Mas esse raciocínio é de quem não entendeu nada. Para nós, “viajantes”, vencer não é chegar; é estar, é ir, é ficar, é perder e perder-se. E, só para terminar, um pensamento do rabino surfista e cabalista, “loser” louco e “viajante” assumido, Nilton Bonder, que sabe que para viver é preciso constantemente, todos os minutos de nossas vidas, morrer um pouco. Quem tem amor excessivo à vida, quem se apega demais aos fins, já está praticamente morto. Para viver é preciso sempre estar próximo da morte e contê-la em alguma medida; a morte, aquela a quem tantos chamam, própria e impropriamente, de “viagem”.
*Noemi Jaffe é doutora em literatura brasileira pela USP, escritora e colaboradora da Folha de S.Paulo. Publicou Folha explica Macunaíma (Publifolha, 2001), Ler palavras, ver imagens (Global, 2002) e Todas as coisas pequenas (Hedra, 2005)
VAI LÁ: Para assistir ao curta Tyger acesse www.guiherme.tv
POR NOEMI JAFFE* IMAGENS GUILHERME MARCONDES
Sou uma daquelas pessoas sobre quem muita gente diz: “Nossa, ela viaja!” – na maioria das vezes com sentido pejorativo. Entendo a pejoratividade (essa palavra não existe) atribuída a essa prática – “viajar” –, mas discordo. E muito em razão de um orgulho ideológico desta minha teimosia “viajante”. Quanto mais me criticam, mais me atenho, e com insistência cada vez maior, à minha “viagem” e passo a considerar que só depõe contra si mesmo quem diz “fulano qualquer é viajante”. Escolhi não tomar os atalhos; prefiro sempre os caminhos e, nesse sentido, quanto mais tortos e vicinais, melhor. Os críticos de quem viaja pegam no pé, na verdade, da tortuosidade, da negação da objetividade, do finalismo, de “pôr os pingos nos is”, de ir direto ao que interessa. Mas o que interessa? Os meios sempre me interessaram muito mais do que os fins, e minha visão ética da vida é que os fins são necessariamente uma conseqüência dos meios, senão eles não têm a menor importância nem tampouco legitimidade. E, se percorri os meios, como quer que eles tenham sido, com dignidade e prazer (mesmo com todas as dores que o prazer implica), os fins serão dignos também, ou talvez nem cheguem a existir, o que, nesse caso, não importa. Os fins terão sido os meios. É assim que entendo a idéia de “viajar” e é por isso que me orgulho de ser uma pessoa “viajante”.
OUTSIDERISMO
Tenho epifanias até indo ao supermercado; ainda sei me espantar com o espantoso, lembrando o que diz Modesto Carone sobre Kafka (um “viajante”, segundo os padrões modernos): “O espantoso é que o espantoso não espanta mais”. Mas, apesar de segura dessa escolha como “viajandona”, ainda preciso de companhias para não me sentir tão só. Sim, porque não é fácil ser assim. Assumir que se é uma pessoa que “viaja” implica a aceitação da solidão, do “outsiderismo” que acompanha a “viagem”. É por isso que me consolo muito nas boas companhias de outros “viajantes” históricos e bem mais interessantes. Emily Dickinson, por exemplo:
O “pedigree” do mel
Não interessa à abelha.
Um trevo para ela –
Em qualquer hora do dia –
É aristocracia.
É a idéia dos meios e dos fins. Ou então:
Eu sou Ninguém. E você?
É ninguém também?
Formamos par, hein? Segredo –
Ou mandam-nos pro degredo.
Que enfadonho ser alguém!
Tão público como o sapo
Coaxando seu nome, dia vai, dia vem
Para um boquiaberto charco.
Assim, cotidianamente, fazemos em silêncio pares com outros ninguéns. Ou então William Blake, que, ainda antes de Nietzsche, compreendeu que era necessário subverter o cristianismo por dentro para que ele deixasse de se tornar instrumento institucional de poder e passasse a ser uma forma de libertação.
“O espantoso é que o espantoso não espanta mais” (Modesto Carone)
Blake trocou o servilismo pela revolta e mudou o símbolo do cristianismo do carneiro para o tigre. Para Blake, o corpo, e não a alma, é que representa a fonte da energia primitiva, dos impulsos e da criação, sempre, entretanto, em equilíbrio com o poder produtivo da razão.
Assim, vários de seus “Provérbios do inferno”, do casamento do céu e do inferno, adulteram a moral tradicional e propõem exatamente o contrário do senso comum, maior e mais poderoso instrumento dos “não-viajantes”: A Eternidade anda apaixonada pelas produções do tempo; Se o louco persistisse em sua loucura, acabaria se tornando sábio; A raposa condena a armadilha, não a si própria; A cisterna contém; a fonte derrama; Nunca se sabe o que é suficiente até que se saiba o que é mais que suficiente; Ouve a reprovação do tolo! É um elogio soberano!; O Progresso constrói estradas retas; mas as estradas tortuosas, sem o Progresso, são estradas da Genialidade.
MAS PRA QUE SERVE ISSO?
Uma das associações mais temidas e, portanto, mais criticadas, pelos detratores dos “viajantes”, é que quem “viaja” acaba se tornando um “loser” (outra noção assustadora). É claro, quem “viaja” e se preocupa mais com os meios do que com os fins dificilmente vai se tornar um “winner”, já que estes só têm em mente justamente os fins de tudo. A pergunta de um “winner” é sempre: “Mas para que serve isso?”. Ao que um “viajante” invariavelmente responde que não sabe, mas que aquilo é bonito, ou gostoso, ou mesmo difícil, mas interessante em e por si mesmo. Assim, um dos textos mais representativos para nós, “viajantes”, pode ser a “Estética da abdicação”, de Fernando Pessoa:
Conformar-se é submeter-se e vencer é conformar-se, ser vencido. Por isso toda a vitória é uma grosseria. Os vencedores perdem sempre as qualidades de desalento com o presente que os levaram à luta que lhes deu a vitória. Ficam satisfeitos, e satisfeito só pode estar aquele que se conforma. Vence só quem nunca consegue. Só é forte quem desanima sempre.
É claro que muitos vão dizer que a crítica aos “winners” é a racionalização dos “losers”. Não vencem, então encontram uma forma de dar sentido ao seu fracasso. Mas esse raciocínio é de quem não entendeu nada. Para nós, “viajantes”, vencer não é chegar; é estar, é ir, é ficar, é perder e perder-se. E, só para terminar, um pensamento do rabino surfista e cabalista, “loser” louco e “viajante” assumido, Nilton Bonder, que sabe que para viver é preciso constantemente, todos os minutos de nossas vidas, morrer um pouco. Quem tem amor excessivo à vida, quem se apega demais aos fins, já está praticamente morto. Para viver é preciso sempre estar próximo da morte e contê-la em alguma medida; a morte, aquela a quem tantos chamam, própria e impropriamente, de “viagem”.
*Noemi Jaffe é doutora em literatura brasileira pela USP, escritora e colaboradora da Folha de S.Paulo. Publicou Folha explica Macunaíma (Publifolha, 2001), Ler palavras, ver imagens (Global, 2002) e Todas as coisas pequenas (Hedra, 2005)
VAI LÁ: Para assistir ao curta Tyger acesse www.guiherme.tv