Um dia no inferno

por Karla Monteiro
Trip #183

Na carceragem que foi metralhada pelo Comando Vermelho, só o martírio é democratizado

Em outubro, o Comando Vermelho derrubou um helicóptero e metralhou uma carceragem da polícia no Rio. Antes que a panela de pressão explodisse, penetramos na unidade da Polinter que foi alvejada e descobrimos um pedaço do Brasil que desafia as leis da física e da justiça e onde apenas o martírio é democratizado

Existe uma lei no Brasil, chamada Lei de Execução Penal, promulgada há duas décadas, que diz o seguinte em um de seus artigos: “A todos os presos deve ser reservado um espaço de 6 m2”. No Grajaú, zona norte do Rio, fica uma das carceragens da DC Polinter – Divisão de Capturas da Polícia Interestadual. Na teoria, um local de triagem de presos, que deveriam ser encaminhados para o sistema penitenciário logo após serem fichados. Na prática, um depósito de gente. Espremida entre uma escola pública e um hospital de oncologia, numa rua movimentada, ao lado da entrada do agora famoso morro dos Macacos, a cadeia ocupa uma construção de dois andares esmorecida pela fuligem. As janelinhas miúdas, protegidas por grades enferrujadas, e a pintura cor de mostarda das paredes complementam o ar de abandono.

No fim de outubro, uma semana após a confirmação do Rio como capital olímpica de 2016, os arredores da Polinter foram palco de uma guerra entre traficantes que teve repercussão internacional. Numa ousada tentativa de tomar as bocas de fumo do morro dos Macacos, comandadas por uma facção criminosa chamada ADA (Amigos dos Amigos), bandidos do Comando Vermelho derrubaram um helicóptero da Polícia Militar e viraram sua artilharia contra o velho prédio da Polícia Civil. Depois da refrega, as coisas começaram a mudar por ali. A chefia foi removida, 200 presos foram transferidos, outros 200 permaneceram – num espaço suficiente para 50, caso fossem respeitados os tais 6 m2 previstos por lei. A Trip, no entanto, esteve lá no início do ano, antes que a panela de pressão explodisse. Eis o que encontramos:

Ultrapassado o portão de ferro negro, decorado com o símbolo da Polícia Civil, penetra-se num universo onde o inferno é para todos, da sala do diretor aos porões infestados de baratas e doenças. Só para se ter uma ideia da situação nacional, alguns números mostram que infelizmente o condomínio Grajaú não é uma exceção. Uma pesquisa do Conselho Nacional de Justiça, divulgada em fevereiro deste ano, diz que o Brasil tem 462.803 presos, sendo 212.436 provisórios. Ou seja, 46% dos detidos não foram julgados. No Rio, existem 23.672 presos, sendo 8.325 provisórios, um percentual de 35,7%. “O inchaço das cadeias provisórias é um caso muito sério. Há um excesso de decretações por parte dos juízes de primeira instância”, avalia o defensor público Pedro Paulo Carriello, da Defensoria Pública do Rio de Janeiro. “No Rio, a Polinter é a grande concentradora de presos provisórios. Um suspeito só poderia ficar lá no máximo dez dias, até que fosse instaurado o inquérito. Acabam ficando anos.”

“Bom mesmo era na ditadura, quando se podia descer o cacete nesses vagabundos. Agora os caras nem apanham e ainda reclamam”

As regras da Polinter Grajaú não estão escritas em lugar nenhum. São códigos muito próprios. Os habitantes locais se hierarquizam mais ou menos assim: “os polícia”, “os faxina”, “os comédia” e “os responsa”. Em cadeia, não existe plural, diga-se. Aos “polícia” cabe o martírio diário de caçar vagas no “sistema”, atender reivindicações, fazer a triagem das visitas e garantir a ordem, sem fugas ou rebeliões. Os chamados presos “faxina” fazem as vezes de funcionários e até de carcereiros. Pegos por crimes como estelionato, agressão, furto, contrabando e escorregadas em geral, eles servem cafezinho, cuidam da limpeza, abrem e fecham portões, levam comida nas celas e até abundam-se atrás dos computadores, cuidando da parte burocrática da coisa. A função depende do grau de instrução e da periculosidade. Os presos “comédia” são os problemáticos, criadores de confusão. A maioria pertence à raia miúda do tráfico. Os “responsa”, criminosos mais graduados, lideram os calabouços, fazendo funcionar dentro dos cubículos fétidos um esquema inacreditável de acomodação de corpos. “Na falta de funcionário trabalhamos com preso. Os ‘faxina’ assinam uma folha de ponto de segunda a sexta. Para cada três dias trabalhados, diminuem um de pena”, comenta o investigador William de Almeida, chefe do local.

A sala do chefe
Subindo a escada, virando à direita, no fundo do largo corredor, fica a sala do chefe. William ocupa uma mesinha de canto, debaixo de uma insistente goteira. Sobre sua escrivaninha, somente um telefone e um laptop que carrega de casa. A biografia de William se encaixa no seu personagem. Reclamão, discursivo, reivindicador, ele parece estar sempre defendendo uma causa. Nos anos 80, temporada das grandes greves, William trabalhava no Bradesco e fazia piquetes na porta dos bancos. Membro da alta cúpula do sindicato dos bancários, vivia em risco de perder o emprego. Há exatos 19 anos, entrou para a polícia. Queria estabilidade. Fez, então, concurso para carcereiro, hoje chamado de investigador. O investigador explica a matemática da superlotação no Grajaú: “A entrada é geométrica e a saída é aritmética. Recebemos presos de segunda a segunda. E só tenho saídas nas segundas e sextas. Meu recorde foi 537 presos. A cadeia ia explodir. Não que eles não mereçam castigo. Mas desse jeito fica feio para todo mundo”.

William divide a salinha claustrofóbica com dois colegas, Luiz Antônio Sena e Rita Lage, companheiros desde os tempos da Polinter Centro, além de uma procissão de “presos faxina”. Sena faz o tipo policial de filme nacional: corrente e anel de ouro, camisa aberta no peito, jeito de durão. Calado e desconfiado, Sena de vez em quando solta umas pérolas. “Bom mesmo era no tempo da ditadura, quando se podia descer o cacete nesses vagabundos. Agora os caras nem apanham e ainda reclamam”, opina. Há 33 anos, Sena resolveu fazer concurso e virou carcereiro: “Sempre gostei de polícia. Achava bonito andar de viatura. Antigamente tinha mais disciplina e vagabundo não dava tiro no polícia como acontece hoje porque sabia que a vida ia ser dura dentro da cela”.

A terceira personagem da sala do chefe é Rita Lage, um mulher farta e bem-apessoada, sempre meiga e vestida para passear no shopping. A função de Rita consiste na revista das visitas femininas. Ela também era bancária e também entrou para a polícia há 19 anos em busca de estabilidade. Rita e William, apesar do passado comum, encontraram-se já nas carceragens da vida. Moradora de Jacarepaguá, Rita conta que nos tempos da Polinter Centro ela tinha que vestir uma camiseta preta da Polícia Civil por questão de segurança. A cor da blusa ajudava a identificar quem era quem nos momentos de tumulto. Agora pode se produzir. Apesar dos trajes insinuantes, a policial é tranquila. Passava os dias fumando o seu cigarrinho na janela e conversando com os “faxina”. Na sala do chefe, trabalham três presos, que se revezam nos computadores. Eles cumprem oito horas de jornada e dão conta de toda a organização burocrática da cadeia. “Não se pode misturar esses meninos de crimes eventuais com os caras lá de baixo, que são bandidos de carreira. Toda cadeia tem uma lógica”, garante.

O corredor
O espaço de ligação entre a sala do chefe e os portões de acesso às celas é uma espécie de social da cadeia. Misturam-se ali presos antigos, outros que cometeram crimes de colarinho branco, visitas e uma profusão de “faxinas”, cada um cumprindo uma função. Os irmãos Flávio e Alexandre Paixão Neves, dois grandalhões, estilo segurança de boate, abrem e fecham portas. Eles estão presos por crime de extorsão. Segundo o chefe William, a rotina dos dois é a seguinte: Alexandre jura inocência e Flávio chora. “O Flávio só tem tamanho. As pessoas tiram com ele e ele chora. Na portaria, como você pode ver, eu tenho o Pink e o Cérebro. Conhece esse desenho animado?”, pergunta William.

Outra figurinha do pedaço é Rogério Vicente, um garoto de 20 anos, do interior do Mato Grosso do Sul. Rogerinho serve café e água na sala do chefe e fica ali pelo corredor aguardando ser solicitado. Educado e bem caipira, ele foi assistir a televisão pela primeira vez na cadeia. Antes de ser preso, trabalhava havia dois anos com um cunhado, num mercadinho de frutas. Um dia o tal cunhado o chamou para uma viagem ao Rio de Janeiro. Com o sonho de conhecer Copacabana, ele topou. Na cidade, hospedaram-se num hotel em Ipanema. E foi nessa hora que Rogerinho descobriu que estava enrascado. Seu primo Elton, conhecido lá no Mato Grosso por militar nas fileiras do tráfico carioca, apareceu para combinar a entrega de uma encomenda: 8 kg de haxixe. “Pensei em sair correndo, mas fiquei com medo da cidade. A gente foi, então, para a Rocinha. No caminho fomos pegos. O celular de uma mulher que o Elton estava em contato havia sido grampeado”, contou.

“A sensação de ficar dentro de uma cela dessa é absurda. Ninguém pode nem sequer imaginar”

Entre dois portões
Daqui para a frente, o clima esquenta. Literal e metaforicamente. No pedacinho espremido entre os dois portões de ferro que isolam completamente as celas do mundo, ficam, de um lado e de outro, as salinhas de visitas. Território proibido. Só se vê de passagem presos e familiares cochichando, sem desviar o olhar. Ali ao lado também está uma cela minúscula, que abriga o chamado “porquinho”, um cubículo onde são depositados os recém-chegados para a triagem, que os divide por facções; e uma cela de “seguro”, onde se misturavam “neutros” e acusados de crimes bárbaros, como estupro, que seriam mortos em celas comuns.

Rodrigo Ferreira, um paulista do interior do Estado, com sotaque carregado, é um dos “faxinas” que atuam ali, na cara do gol. Preso no Galeão por tráfico internacional de peças de informática, ele acumula funções. Até mesmo tirar presos das celas e revistar. Segundo Rodrigo, o “trampo” é de risco. “O trabalho do ‘faxina’ é perigoso. Fazemos as vezes de carcereiros e somos odiados por isso. Os caras ameaçam com o olhar. Se encontrar na rua depois, vai matar”, conta. “Para ser ‘faxina’, não pode ter facção e tem que ter cometido um crime mais leve. Eu fiquei três meses e meio no ‘seguro’ até ser requisitado. A sensação de ficar dentro de uma cela dessa é absurda. Ninguém pode nem sequer imaginar.”

O inferno
Calor, ventiladores gigantescos soprando um vento quente, rostos colocados nas grades. À primeira vista, não parece haver dentro das celas espaço para mais uma mosca. Os presos se mantém, em sua maioria, sentados no chão, encolhidos, ombro a ombro. E o restante, que não tem onde pisar caso queira descer, se pendura em redes. Há regra para tudo dentro dos calabouços. Quem desrespeita não vive para contar. Ao todo a Polinter Grajaú conta com 11 celas, uma de “seguro” para os neutros, uma para o chamado Terceiro Comando e nove só para o Comando Vermelho, a facção mais antiga da guerra carioca. Os encarcerados saem das celas uma hora por semana. Eles têm direito ao que chamam de banho de ar. No fosso do prédio, há um quadrado em que não bate sol, mas onde podiam esticar as pernas e tomar uma chuveirada.

Itamar Paiva, 45 anos, está no “seguro” desde 27 de maio de 2007. Seu crime ficou famoso no Rio. Motorista de táxi, ele agrediu com uma barra de ferro André Luís Reuter Lima, quando este atravessava uma rua na Tijuca com três adolescentes, sendo dois seus filhos. Itamar avançou o sinal, André reclamou e levou dezenas de coronhadas. Condenado por tentativa de homicídio, Itamar é, dentro do código local, um “responsa”. Atua no comando de sua cela. Segundo ele, há três líderes ali dentro: o “ligação” coleta reivindicações, recebe e repassa informações. O “contenção” cuida da distribuição da comida, já que ninguém pode se mexer. Com a falta de espaço, a imobilidade é regra básica. E o “representante” leva as reivindicações e fala em nome de todos os presos nas reuniões semanais com a chefia. “Hoje sou o terceiro mais antigo da cela. Quem chega fica no fundo, próximo ao “boi” (latrina). À medida que presos vão sendo transferidos, a fila anda. Só tem direito a rede quem paga no mínimo R$ 50 para o coletivo, às vezes mais. Com o dinheiro a gente compra coisas para todos”, afirma, sem explicar porém a transação financeira, já que dinheiro em cadeia é proibido por lei. “Para matar o tempo, os presos leem a Bíblia, jogam dominó, conversam e assistem a televisão. Não tem como fazer qualquer exercício. No máximo, dá para virar de lado.”

Luciano Silva, o Cocão, não tem facção, mas está na cela do Terceiro Comando, que aceita os neutros. Com oito passagens pela cadeia por furto, escolado de superlotação, ele chegou e comprou uma rede de frente para a única televisão. Luciano garante que já viu coisa pior na 37ª delegacia, na Ilha do Governador. Lá não tinha nem ventilador e ninguém fazia nada pelos presos. Ali na unidade Grajaú o chefe pelo menos providencia vacinação e permite que a Assembleia de Deus dos Últimos Dias ofereça dentista para quem precisa. Toda quarta uma van da igreja, improvisada para consultório, para na porta da Polinter. Segundo Cocão, só mesmo Deus para tentar dar jeito por ali. “Será que Jesus desce ao inferno?”, pergunta.

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