Nosso colunista está aflito com os países que não querem trocar armas por pratos de filé, os sofismas metereológicos das autoridades brasileiras e os surdos que não querem ouvir
POR J.R.DURAN*
Você está com fome? Tome cuidado, há 190 vezes mais chances de tomar um tiro na bunda do que de ganhar um pedaço de pão. A equação é muito simples: enquanto você lê este texto, gasta-se no mundo 190 vezes mais dinheiro em armamentos do que em ajuda a países com problemas alimentares. A conta para brincar de mocinho e bandido é de 850 milhões de euros por ano. E quem disse isso? O Sipri. E quem é o Sipri? É o Instituto Internacional de Investigação para a Paz, criado em Estocolmo, em 1966, para comemorar os 150 anos de paz ininterrupta na Suécia.
Por outro lado, a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), em uma conferência sobre a segurança alimentar mundial em Roma, anunciou que o orçamento para combater a fome e promover o desenvolvimento agrícola em países carentes chegaria este ano a 4,5 milhões de euros. Faça as contas.
Não resisto a pensar que, se esses países que gastam tanto dinheiro em armamento trocassem as balas por pratos de fi lé com batatas fritas, teriam mais infl uência e poder sobre os outros. Que mães não teriam de chorar os fi lhos mortos nos campos de batalha. É uma idéia bem anos 60, mas fazer o quê?
Uso com bastante freqüência a palavra “aflição”. Um estado de espírito que cruza meu pensamento quando desconfi o de que alguém tenta convencer o outro de alguma coisa que não se encaixa na realidade.
Me dá aflição, por exemplo, cada vez que o poder público culpa as nuvens por desastres. Se uma cratera inacreditável aparece nas obras do metrô, a culpa é da chuva. Falta água, a culpa é da falta de chuva. O avião sai da pista, a culpa é do excesso de chuva. E por aí vai. De uma simplicidade absolutamente nebulosa. Todo mundo sabe que no verão chove, e muito, em climas tropicais, e no inverno não. Ponto. São Paulo, ao que me consta, fica em uma dessas áreas desde sempre. Sei que por algum tempo se quis que a capital do Estado mudasse de lugar, mas me consta que, desde o momento em que os jesuítas começaram a empilhar pedras para levantar o Colégio em volta do Pátio, a cidade não se mexeu. Os jesuítas conseguiram fundar São Paulo com planejamento. Por que será então que se insiste em criar o sofisma meteorológico?
Por uma dessas reentrâncias e saliências da vida (como dizia o meu amigo Zito, de Itanhaém), tive de passar uma noite em Florianópolis. O cliente me hospedou no último andar de um belo hotel, com belos prédios de cada lado e a poucos metros do mar. Prédios, como diriam os anúncios imobiliários, considerados de “alto padrão”. Era um fim de tarde de agosto, temperatura agradável e um pôr-do-sol inacreditável. Abri a janela para poder abraçar melhor aquele raro momento e recebi como uma bofetada o barulho dos carros que, entre o hotel e a praia, trafegavam por oito pistas impecavelmente asfaltadas. Fiquei pensando nos moradores de “alto padrão” que moram nos prédios vizinhos (caríssimos, disse o motorista de táxi que me levou para o aeroporto no dia seguinte) e que estão inevitavelmente condenados a usufruir da vista sem o direito ao silêncio. Que esses moradores tenham aperfeiçoado a arte da sublimação do ruído, com a ajuda do ar-condicionado e do vidro à prova de som. Descobri, contemplando os carros que passavam no fim da tarde dourada e barulhenta, que, assim como não há pior cego do que o que não quer ver, também não tem pior surdo do que aquele que não quer ouvir.
*J. R. DURAN, 55, fotógrafo e escritor, está em busca de um remédio para a aflição. Seu e-mail é studio@jrduran.com.br
Você está com fome? Tome cuidado, há 190 vezes mais chances de tomar um tiro na bunda do que de ganhar um pedaço de pão. A equação é muito simples: enquanto você lê este texto, gasta-se no mundo 190 vezes mais dinheiro em armamentos do que em ajuda a países com problemas alimentares. A conta para brincar de mocinho e bandido é de 850 milhões de euros por ano. E quem disse isso? O Sipri. E quem é o Sipri? É o Instituto Internacional de Investigação para a Paz, criado em Estocolmo, em 1966, para comemorar os 150 anos de paz ininterrupta na Suécia.
Por outro lado, a FAO (Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação), em uma conferência sobre a segurança alimentar mundial em Roma, anunciou que o orçamento para combater a fome e promover o desenvolvimento agrícola em países carentes chegaria este ano a 4,5 milhões de euros. Faça as contas.
Não resisto a pensar que, se esses países que gastam tanto dinheiro em armamento trocassem as balas por pratos de fi lé com batatas fritas, teriam mais infl uência e poder sobre os outros. Que mães não teriam de chorar os fi lhos mortos nos campos de batalha. É uma idéia bem anos 60, mas fazer o quê?
Uso com bastante freqüência a palavra “aflição”. Um estado de espírito que cruza meu pensamento quando desconfi o de que alguém tenta convencer o outro de alguma coisa que não se encaixa na realidade.
Me dá aflição, por exemplo, cada vez que o poder público culpa as nuvens por desastres. Se uma cratera inacreditável aparece nas obras do metrô, a culpa é da chuva. Falta água, a culpa é da falta de chuva. O avião sai da pista, a culpa é do excesso de chuva. E por aí vai. De uma simplicidade absolutamente nebulosa. Todo mundo sabe que no verão chove, e muito, em climas tropicais, e no inverno não. Ponto. São Paulo, ao que me consta, fica em uma dessas áreas desde sempre. Sei que por algum tempo se quis que a capital do Estado mudasse de lugar, mas me consta que, desde o momento em que os jesuítas começaram a empilhar pedras para levantar o Colégio em volta do Pátio, a cidade não se mexeu. Os jesuítas conseguiram fundar São Paulo com planejamento. Por que será então que se insiste em criar o sofisma meteorológico?
Por uma dessas reentrâncias e saliências da vida (como dizia o meu amigo Zito, de Itanhaém), tive de passar uma noite em Florianópolis. O cliente me hospedou no último andar de um belo hotel, com belos prédios de cada lado e a poucos metros do mar. Prédios, como diriam os anúncios imobiliários, considerados de “alto padrão”. Era um fim de tarde de agosto, temperatura agradável e um pôr-do-sol inacreditável. Abri a janela para poder abraçar melhor aquele raro momento e recebi como uma bofetada o barulho dos carros que, entre o hotel e a praia, trafegavam por oito pistas impecavelmente asfaltadas. Fiquei pensando nos moradores de “alto padrão” que moram nos prédios vizinhos (caríssimos, disse o motorista de táxi que me levou para o aeroporto no dia seguinte) e que estão inevitavelmente condenados a usufruir da vista sem o direito ao silêncio. Que esses moradores tenham aperfeiçoado a arte da sublimação do ruído, com a ajuda do ar-condicionado e do vidro à prova de som. Descobri, contemplando os carros que passavam no fim da tarde dourada e barulhenta, que, assim como não há pior cego do que o que não quer ver, também não tem pior surdo do que aquele que não quer ouvir.
*J. R. DURAN, 55, fotógrafo e escritor, está em busca de um remédio para a aflição. Seu e-mail é studio@jrduran.com.br