Transformar o que e como

”Se transformar é preciso, decidir sobre o que e como se quer mudar é mais ainda”

 Se transformar é preciso, decidir sobre o que e como se quer mudar é mais ainda

Navegar é preciso, viver não é preciso. A frase é do romano Pompeu, de cerca de 70 a.C., quando se preparava para combater piratas no Mediterrâneo; Fernando Pessoa, Benito Mussolini e Caetano Veloso se apossaram dela, cada um a seu modo, mas todos com um sentido no qual, fora o aspecto lírico, “navegação” poderia ser lida como “transformação”. Mais complicado seria definir para onde se navega (ou se transforma), a não ser que consideremos que Pompeu, Fernando, Benito e Caetano pudessem ser marinheiros do mesmo barco. A ideia da transformação como algo positivo é relativamente nova. Até mais ou menos o Iluminismo e a Revolução Francesa, a mudança era normalmente vista como uma coisa negativa, e as pessoas defendiam ferrenhamente a conservação dos valores, das tradições e das religiões de seus ancestrais. Muitas antigas revoltas e rebeliões buscavam restaurar a velha ordem, e não alterá-la. O século 19, com a chegada da fé no progresso, fosse esta de filiação liberal, anarquista ou marxista, viu expandir-se a crença de que a transformação era não só bem-vinda, mas necessária, numa tendência que só se ampliou no século 20. E os países ocidentais passaram a justificar o imperialismo com o discurso de que levariam a modernidade (hoje se fala em democracia) para povos “atrasados”.

Em nossos tempos, a palavra “conservador” virou quase um xingamento. E é aí que está o problema, que não se saiba bem para onde se quer mudar. Lá pelos idos de 1930, por exemplo, nazifascistas (como Hitler e colegas) defendiam a mudança, assim como os comunistas (Stalin e amigos).
O custo humano dos projetos transformadores dessa gente nós sabemos qual foi. Em 1979, o planeta aplaudiu a revolução no Irã, que derrubou a ditadura do xá Reza Pahlevi. Desde então o que ocorreu por lá foi uma triunfal marcha em direção à... Idade Média. Certo medo do futuro têm hoje, com razão, muitos egípcios, líbios e tunisianos, de olhos bem abertos sobre o que pode acontecer assim que baixar a poeira das festas que comemoram os sucessos da Primavera Árabe. O que a experiência mostra é que, se transformar pode ser bom, necessário e até urgente, nem sempre o que se faz em nome da mudança é tão bom assim.

E por aqui?

No caso brasileiro, a defesa da transformação como algo positivo nasceu com a República e cresceu sem parar ao longo do último século. JK, Collor, FHC e Lula, cada um a seu modo, construíram suas carreiras políticas sob o discurso (honesto ou não) da mudança. Em nosso caso, o desejo de transformar tem a ver com a inadiável necessidade de enfrentar os problemas de nosso passado e que trazem o risco de nos inviabilizar como nação, como o autoritarismo, o patrimonialismo, a corrupção e a desigualdade social.

Mas, se transformar é preciso, decidir o que (e como) se quer mudar é mais ainda. Exemplos de problemas mal discutidos não faltam: a defesa das cotas raciais é correta ou será que estamos importando uma questão norte-americana e trocando a noção de renda pela de raça? E o que dizer do novo Código Florestal, que está sendo imposto pela bancada ruralista no Congresso, passando por cima de qualquer consulta séria à comunidade científica? Ao contrário de democracias antigas, ainda estamos aprendendo a discutir e a decidir. Não temos claro o papel do estado, das ONGs, dos sindicatos e principalmente de nós mesmos, os cidadãos. E é fundamental que tenhamos. Navegar é preciso, mas também é preciso saber se vamos no nosso barco, no do Pompeu, do Fernando, do Caetano ou do Benito.

*André Caramuru Aubert, 48, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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