Traído pela memória

por Henrique Goldman
Trip #130

As peregrinações de um jovem astro de rock sob a ótica de um colunista quarentão

Em 1977 eu tinha 16 anos e cantava num conjunto de rock de protesto-progressista. Nossas canções combinavam uma imitação de Pink Floyd com o ódio da ditadura militar. Nosso momento de glória foi um honroso décimo lugar no Festival da Canção de Queluz, às margens da via Dutra, onde morava a avó do guitarrista e do tecladista.

Quando meu pai soube da minha segunda reprovação consecutiva no primeiro ano do colegial, ele atirou minha guitarra contra a parede, encerrando minha carreira de astro do rock. Minha mãe decidiu que eu teria de cortar o cabelo. Já era demais. Como um Sansão que não se deixa vencer, me mandei para Natal.

Lá, conheci um argentino, Ricardo Héctor Gomez, que também tinha botado o pé na estrada. Juntos, viajamos durante oito meses pelo Nordeste sem um puto no bolso. Um dia, estávamos em São Luís, no Maranhão, e fomos abordados por uma figura bizarra, um anão vestindo calça branca, camisa de seda vermelha e uma ridícula peruquinha ruiva na cabeça. Era uma espécie de Mini-me do Agnaldo Timóteo, totalmente gay. Disse ser dono de um restaurante e nos convidou para almoçar. O restaurante era humilde, num barraco de favela. Depois do almoço deitei numa rede e adormeci.

Quando acordei, já estava escuro e senti que alguém estava acariciando meu pau. Pensei que fosse o anão e abri um olho só para averiguar. Mas não era o anão! Era um cara que eu nunca tinha visto antes e, naquela altura, já estava me chupando! O anão, por sua vez, estava na cama ao lado sendo enrabado pelo argentino. Ainda fingindo que estava dormindo, gozei na boca do desconhecido. Ele engoliu e foi embora. Nunca soube quem foi o autor daquela pepeta.

Na manhã seguinte, quando acordamos, eu e Ricardo não conseguimos mais nos encarar, com vergonha de termos participado daquela suruba dadaísta. Ele foi para Belém do Pará. Eu fui para Pernambuco. Cheguei em Olinda no meio da noite. Estava chovendo e eu não tinha onde dormir. Encontrei um maluco que me mostrou uma casa abandonada onde eu poderia pernoitar. Adormeci num canto e acordei apavorado com o barulho ensurdecedor de um piano cujas teclas estavam sendo esmurradas na escuridão. Era o Beto, sensível, melancólico e enigmático. Todas as noites ele entrava na casa para tocar piano no meio dos escombros. Ficamos amigos, mas eu fui embora depois de duas semanas e nunca mais o vi. 

Tel Aviv 

Quinze anos depois, estava em Tel Aviv quando vi duas moças falando português com sotaque nordestino. Eram duas empregadas domésticas de Olinda que foram ganhar a vida em Israel e conheciam o Beto. Me contaram que, um dia, o pai dele matou a mãe e foi preso. A família foi desfeita e a casa abandonada. Todos na cidade sabiam que, à noite, o Beto voltava ali para tocar piano no escuro, lembrando da mãe.

Há anos venho lembrando e contando essas histórias. Os anos deturpam os fatos porque a história é escrava da cabeça. Mas a cabeça também é escrava da história. Talvez meu pai tenha jogado um violão e não uma guitarra contra a parede. Talvez o anão fosse só um baixinho. Talvez o desconhecido da chupetinha fosse o próprio argentino. Talvez as moças em Tel Aviv tenham inventado o assassinato da mãe do Beto. Com toda razão o dramaturgo irlandês George Bernard Shaw disse que todo homem acima dos 40 anos é um grande canalha.

Créditos

Imagem principal: Marcos Vilas Boas

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