Tragédia em gestação

Mendes: A falta de uma lei de egresso da prisão causa alto índice de reincidência no crime

O Estado de São Paulo não tem uma lei que o obrigue a apoiar o egresso da prisão. Após décadas no cárcere, o libertado toma um “te vira” na cara. O produto dessa barriga nós conhecemos bem: o índice de reincidência ultrapassa os 75%

O Brasil parece uma imensa barriga a gestar constantes tragédias. Algumas bastante visíveis e profundamente doloridas, como essa de Santa Maria, no Rio Grande do Sul, com 235 pessoas mortas e 143 feridas. Quantas boates, naquele momento, estariam nas mesmas condições de falta de equipamentos e segurança no país? Arrombadas as portas, agora estão colocando cadeados... Bem, antes tarde do que nunca.

Em São Paulo não se tem consciência de tragédia. Exatamente porque não houve uma, mas múltiplas pequenas tragédias. As execuções e chacinas ocorridas nos últimos três meses no estado somam várias centenas de vidas, na maioria de jovens, ceifadas abruptamente.

Muitos daqueles que deveriam falar, por força de suas posições sociais, não se manifestaram. Temem consequências, e com razão. A primeira chacina do ano, gestada na barriga da impunidade, deixou a soma de sete mortos e dois feridos no bairro do Campo Limpo, na cidade de São Paulo. Uma das vítimas teria participado da gravação do vídeo, rodado nos jornais televisivos, que mostrava PMs executando um servente de pedreiro. Ficou comprovado: se falar, morre.

A estratégia do estado para lidar com o crime é lotar as prisões. Temos a quarta população prisional do mundo. Meio milhão de pessoas amontoadas em confinamentos. Prisões insalubres, com precaríssimo atendimento à saúde, falta de escola, trabalho, orientação psicológica, atendimento jurídico, com violência interna e espancamentos, que constituem inaceitáveis violações dos direitos humanos.

Pé na bunda

O estado de São Paulo não tem uma só lei que o obrigue a apoiar o egresso de seus cárceres. Depois de cumprir anos, décadas de prisão, o homem libertado toma um pé na bunda e um “te vira” na cara. Essa é uma barriga cujo produto em gestação conhecemos bem. O índice de reincidência ultrapassa 75%. O preconceito cerceia oportunidades. As empresas não admitem pessoas egressas dos presídios. Não há trabalho, muito menos apoio social. E, se não houver família, o expresidiário está apagado do quadro-negro social. De cada quatro pessoas que saem, apenas uma permanece fora da prisão. Os outros três retornam, com novos crimes. Chacinas, matanças e massacres nos são esfregados na cara todos os dias pelos noticiários.

Parece que a brutalidade da busca pela fortuna fácil, do desprezo ao trabalho e à conduta moral tomou de assalto o país. Os políticos tiraram a máscara e estão negociando o bem público desavergonhadamente. Estamos conectados com as notícias mais escabrosas da miséria humana. O que estará sendo gestado nessa barriga em que nos dissociamos do passado para ser presente, sem pensar no futuro?

O tempo transforma o hábito em tédio. E questionamos onde começa e termina o vazio que nos preenche. Não fossem as pessoas, o que elas nos dão de amor e esperança, o nocaute do anoitecer seria o blecaute da vontade de viver.

Apenas 16% dos brasileiros estão capacitados a compreender plenamente o que leem. A média nacional é um livro por ano para cada brasileiro. Qual a gestação dessa barriga? Incapacidade intelectual, tecnológica, científica, esportiva e gerencial. Continuaremos pagando por know-how estrangeiro, desperdiçando capacidades e perdendo nossas inteligências para países que oferecem melhores condições de pesquisa e salários.

As escolas dos países que tiveram melhor colocação no Programa Internacional de Avaliação de Alunos têm aulas em tempo integral. Aqui, estas são pensadas para atender à necessidade de pais que trabalham e para a prática de atividades artísticas ou esportivas. Essa barriga não gesta escola que possa ter uma boa avaliação. Não podemos unicamente oferecer espaço seguro ou oportunidade de diversificação. Escola em tempo integral é para consolidar o básico da educação. Desenvolver a capacidade de leitura e escrita, raciocínio matemático e incentivar as mentes para o questionamento e a investigação.

Quantas e quais outras barrigas estão sendo gestadas no país atualmente? O futuro não se prenuncia nada bom, mas nada está além da capacidade do ser humano, já propenso a surpreender. Portanto, sempre haverá esperança.

*Luiz Alberto Mendes, 60, é autor de Memórias de um sobrevivente. Mantém o blog Mundo Livre no site da Trip. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com

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