Trip revela as façanhas da etnia que montou o primeiro time indígena profissional do país
Treinamentos como a corrida com toras e o desvio de flechas levaram o Gavião Kyikatêjê futebol clube à segunda divisão do campeonato paraense. Trip descobre as façanhas da etnia que montou o primeiro time indígena profissional do país
Em meio à floresta amazônica, a 25 km de Marabá, um clarão na floresta revela a base de uma comunidade indígena. De cima, veem-se as casas em formato circular. No centro, um pátio de cerimônias e um campo de futebol. A distribuição da aldeia não é mera coincidência. Ali moram os jogadores do Gavião Kyikatêjê Futebol Clube, primeiro time indígena profissional do Brasil, oficializado na CBF em agosto passado e conhecido por sua participação atual na segunda divisão do campeonato paraense.
Antes da viagem, ouço histórias sobre a preparação física incomum dos jogadores: que praticam desvio de flechas com chumaços de algodão nas pontas e corrida de toras como parte do treinamento. Entram em campo com os corpos pintados e fazem um ritual com cânticos da tribo antes dos jogos.
A autorização para a entrada na aldeia, no município de Bom Jesus do Tocantis, é dada por Zeca Gavião, 43 anos, treinador e líder do povoado. Ele informa que precisa apenas de alguns dias para preparar os treinos com as toras. E faz um pedido: “Poderia nos trazer algumas bolas?”.
Desembarco no aeroporto de Marabá às 23h, com uma sacola de bolas nas mãos. Ninguém me espera. “Nós estamos a caminho, mas o Primo já vai chegar”, avisa Zeca, no celular. Minutos depois, o preparador físico João Primo, 49, me recebe com um abraço. Formado em educação física, ex-jogador do Imperatriz, do Maranhão, ele é um dos responsáveis pelo sucesso do time. Amigo de Zeca há tempos, foi Primo quem sugeriu ao treinador o curso preparatório de técnica e tática na cidade de Poços de Caldas, em Minas Gerais, realizado por Zeca em 2006. No início deste ano, após quase uma década de trabalho como preparador no Águia de Marabá, o maranhense (não indígena) passou a integrar a comissão técnica do Gavião Kyikatêjê. João Primo mora em Marabá, mas diariamente se desloca até a aldeia para suar os jogadores, exceto nos fins de semana. À noite, trabalha como personal trainer numa academia da cidade.
Reforço branco
Após meia hora, o treinador aparece a bordo de uma Blazer, acompanhado do fotógrafo e de dois jogadores. Seguimos pela BR 222 rumo à aldeia, cortando o rio Tocantins e a escuridão da noite. Procuro saber como será o treino do dia seguinte. “Ainda não sabemos, tenho que conversar com o cacique. Há dois meses, morreu um ancião na aldeia e estamos de luto. Nesse período, é proibido festejar. Nosso luto costuma durar dois anos, mas agora as coisas estão diferentes, há mais flexibilidade. Vamos ver”, responde Zeca. Aos poucos, entendo que as corridas com as toras e o desvio de flechas significam festa para eles, ainda que sirvam para o treino dos atletas de vez em quando. No dia a dia, praticam exercícios físicos comuns aos profissionais. “E como está a equipe no campeonato estadual?”, indago. “Pois é...”, ele diz. “Fomos desclassificados na seletiva para conseguir uma vaga na segunda divisão. Mas o time Negra Carajás, já classificado, estava com problemas financeiros e cedeu os direitos federativos para o Kyikatêjê. Então entramos na segunda, dessa vez como Gavião Kyikatêjê Carajás. Agora são dez times disputando quatro vagas para entrar na elite do paraense, até o fim do ano”, explica.
A sorte parece estar a favor dos Gaviões. O treinador, líder da comunidade, contratou inclusive jogadores não indígenas para reforçar a equipe. “Questão de necessidade”, afirma ele. Situada na reserva Mãe Maria, a aldeia possui recursos próprios para suas obras. Devido ao convênio com a Vale do Rio Doce, que construiu uma ferrovia que atravessa parte da reserva, os índios recebem uma indenização mensal. Com esse acordo, construíram casas de alvenaria em substituição às ocas de madeira e palha, um posto de saúde e uma escola para os 380 moradores. Além disso, a verba colabora no sustento das famílias, paga os atletas profissionais e a manutenção do alojamento dos jogadores não nativos, com cinco quartos, banheiro coletivo e refeitório. Dos 22 jogadores, sete são “brancos” ou “kupen”, como costumam dizer, e sete pertencem a outras etnias (karayás, aikewara, kayapós e xerente). Foi ao lado destes que ficamos hospedados.
“Os meninos não ligam muito para os rituais. Agora só querem saber de futebol”, diz a diretora da escola
O cacique e a Trip
Durante nosso primeiro café da manhã no refeitório, poucos nos dirigem a palavra. “Fiquem à vontade”, alguns dizem baixinho, ao deixar a mesa. Apenas os “brancos” – ainda que sejam negros, os não indígenas são chamados de brancos – arriscam um sorriso tímido. Para os kupen, o contato com as índias é proibido. Mulheres de um lado e homens do outro. Mesmo entre os índios jovens, o contato com o sexo oposto é reservado.
A 100 m do alojamento, a casa de Zeca começa a ser rodeada pelos atletas, à espera do treino, disputando um espaço na sombra. A temperatura beira 40 graus. O treinador explica que teremos que pedir autorização ao cacique para fazer a reportagem. Entramos no carro, cruzamos o círculo central e chegamos ao outro extremo da aldeia. Encontramos um pequeno grupo de senhores e senhoras sob uma construção típica, de palha, aberta em todas as laterais. “É a área dos aposentados.” A maior parte passa o dia no local: as mulheres cozinham sob as árvores, enrolando carnes frescas em folhas de bananeira, para assar sobre as lenhas no chão. O cacique caça com sua espingarda pelas manhãs e quase sempre vai sozinho: traz jabutis, antas, veados, macacos, porcos do mato. À tarde, todos relaxam nas redes. Trocamos apertos de mão. Olham desconfiados. Kykyrê, o cacique, permanece sentado numa cadeira de plástico, confeccionando uma cesta de palha. Sarado, de cabelos negros compridos, não aparenta ser idoso. Mas ignora a própria idade: é a história vivida que revela a longa estrada. Quase viu sua etnia nômade desaparecer por causa de doenças e conflitos, até o momento em que se juntaram aos povos do mesmo grupo – parkatêjê e akrãtikatêjê –, antes espalhados pelo Maranhão e Pará, para começar tudo de novo, em localidades próximas. Nenhum deles fala português; por isso destilam comentários na língua jê timbira. As mulheres se expressam em voz alta, apontam para meu colar, puxam minha camiseta e todos começam a rir. “Ela quer minha roupa, Zeca?” “Quer sim”, ele diz. “Pô, aí não dá, né?”, brinco. Passamos 15 min em silêncio. Eles miram o horizonte e, vez ou outra, nos espiam. Kykyrê pede então um exemplar da Trip. Folheia com cuidado e diz algo para Zeca, que por sua vez nos alivia: “Fiquem à vontade. Vocês estão em casa”.
Esportistas natos
Consagrados em várias edições dos Jogos dos Povos Indígenas, que ocorrem anualmente em diferentes cidades brasileiras, os kyikatêjê são esportistas natos: homens e mulheres se destacam em provas de natação, atletismo, lutas corporais, corrida de toras e arco e flecha. Mas é no futebol que eles, literalmente, se encontraram. “Os meninos não ligam muito para os rituais, nem para a língua. Agora só querem saber de futebol”, lamenta Conserlene Iguaraci Piguara, diretora da escola Tatakti Kyikatêjê, que possui currículo adaptado à cultura local. Além do português, na sala de aula as crianças aprendem a língua jê timbira. O ensino segue o padrão tradicional, com alguns professores de Marabá, exceto nos dias de festa, em que a comunidade se pinta, despe-se e pratica os ritos. Mas basta uma espiada no campo de futebol, que ocupa o centro exato da aldeia, para ver dezenas de crianças ao redor dos jogadores durante o treino, no horário escolar.
Não são apenas os homens que gostam de jogar bola: há um time feminino na aldeia que participa de campeonatos amadores na região. Mas só tivemos contato com a equipe masculina. Debaixo de um calor escaldante, os homens treinam cerca de seis horas diárias. “Agora quero uma fila aqui, agora todo mundo no chão. Pessoal, rapidinho, vamos fazer isso aqui, ó”, comanda Primo. “Eles são muito esforçados”, afirma. “Para acompanhar o ritmo pesado do treino, o branco tem de treinar dobrado. O índio possui muita garra. Sempre acredita que pode mais.”
Após o almoço, os atletas dormem até as 16h, como a maior parte da aldeia. Em momento algum vemos uma expressão mal-humorada. “Aqui tem mais companheirismo, ninguém quer usar o outro como degrau para subir”, avalia o nativo Aritana Sompré, 22, conhecido como o atacante Aru, que rescindiu o contrato com o Ananindeua para jogar no time de casa há poucos meses. “Em Marabá há poucas oportunidades, só tinha o Águia de Marabá como time profissional.” Desde os 13 anos de idade, ele está acostumado a competir com tora nas costas ou bola nos pés. Sobre a mudança de costumes que agora ocorre na aldeia, acha que os indígenas precisam se adaptar à nova realidade. “Não dá mais para viver como antigamente. Quero conciliar minha vida com a sociedade lá fora. Dizem que o índio é preguiçoso e quer a terra para não fazer nada, mas há fazendeiros com 1 mil hectares de terra para uma família. Nós temos cuidado com a subsistência”, defende, lembrando que praticam agricultura tradicional e mecanizada para cultivar arroz, milho, feijão, mandioca, abóbora, batata e frutas, além de possuírem dois tanques para a piscicultura. “Acham que fomos privilegiados, mas conquistamos esse espaço com muita dificuldade.”
Dos 22 jogadores, sete são brancos e sete pertencem a outras etnias
Só Jesus salva
No segundo dia, aproveito para dormir um pouco mais, certa de que o treino atrasará como no dia anterior. Mas sou surpreendida pelo treinador à minha porta, que está nos esperando com o cacique Kykyrê e o índio Prekruti no carro. Seguimos em direção à floresta. Percorremos poucos quilômetros e descemos na área chamada de “Limpeza”, entre os tanques da piscicultura e a represa construída meses atrás para substituir os banhos nos igarapés, que estão secando. “Vocês ficam aqui e acompanham Prekruti, que vai cortar as toras para a corrida. Vou buscar os atletas”, avisa o treinador. O cacique se embrenha na selva para caçar. Curte mesmo é ficar sozinho e não dá a mínima para futebol, acha que “é coisa de branco”. Prekruti, como Kykyrê, não sabe a idade que tem. Mas é um velho guerreiro respeitado por sua habilidade com o arco e flecha, campeão nacional nos Jogos Indígenas. É com ele que entro pela primeira vez na floresta amazônica, caminhando rápido durante 40 min. Paramos em frente a um tronco gigante caído, ele saca seu machadinho e começa a cortá-lo, com uma força descomunal. Aproveitamos para esclarecer algumas dúvidas. Vocês fumam ervas aqui? “Não, nós não fumamos nada.” E por que a maioria está virando evangélica na aldeia? “Porque Jesus criou tudo.” Como assim? “Jesus criou a floresta, eu e vocês. Só Jesus salva.” Há uma Assembleia de Deus instalada na comunidade. O pajé morreu e não há sucessores para ele.
Após pintar as laterais das toras com urucum, largamos tudo ali e pegamos a trilha de volta. De repente, os atletas passam correndo em direção ao lugar das toras. E rapidamente voltam em alta velocidade, em fila indiana, com as toras nas costas. Muitos jogadores brancos estavam fazendo isso pela primeira vez, visivelmente preocupados. Aru passa voando, tirando todos do caminho, com quase 70 kg de madeira no ombro, naquela trilha estreita e cheia de buracos. Sabe-se lá como. Na hora do arco e flecha, em vez do lendário treino de desvio, o arqueiro Prekruti faz uma demonstração de Kaipy, exercício que consiste em atirar as flechas num “alvo” preparado no chão com um caule dobrado, fazendo a flecha quicar e voar muito mais longe. Os jogadores tentam reproduzir, mas ninguém consegue. Vira piada. “Na minha aldeia é diferente”, defende-se o meia-atacante Awatiwai, 21, da etnia aikewara. “A gente atira direto no alvo, não tem de bater no chão. Essa prática é só daqui”, explica.
“Para quem quer sossego e uma vida mais tranqüila aqui é ótimo”, afirma o jogador de Belém
De bala a flecha
Entre os jogadores, parece que os brancos estão se aculturando. “Isso aqui é bom demais, o duro é que a gente se acostuma”, afirma o volante Helio Rubens, 36, de Belém, deitado na rede, à noite. Com 15 anos de profissão, ele já passou pelos times Castanhal, Águia de Marabá e Ananindeua. Acredita que trouxe sua experiência para o time e enxerga a velocidade e a resistência dos índios como pontos fortes da equipe. “As pessoas me receberam muito bem, são muito hospitaleiras e respeitam o espaço de cada um. Experimentei coisas que nunca havia imaginado: caçada, pesca e corrida de toras”, diverte-se. O lateral direito Gil Bala, 23, também de Belém, concorda. “Para quem quer sossego e uma vida mais tranquila é ótimo”, afirma ele, que teve o apelido modificado pelos locais. Hoje, o jogador atende por Gil Flecha.