Aquele que depende de uma só pessoa é um escravo
Disse Derek Walcott: “I myself am a nation”. Numa tradução rápida: “Eu sou uma nação de mim mesmo”. É por pérolas como essa, extraídas de ostras submersas no caribe das entranhas, que Walcott, um poeta, dramaturgo e artista plástico nascido na ilha de Santa Lúcia, ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1992. Seu versinho curto captura dois paradoxos gigantescos da identidade humana. Um é que somos, cada um, ao mesmo tempo muito únicos (I myself) e muito diversos (am a nation). E o outro, já que um ouvido livre e inspirado pode entender o verso como “I myself emanation” (Eu sou uma emanação de mim mesmo), é que somos e não somos. É uma maneira belíssima de responder àquela que talvez seja a questão mais central da identidade ou da ontologia, pelo menos como foi colocada no Ocidente: “Ser ou não ser?”.
A identidade não é um bicho fácil de capturar. Talvez nem seja um bicho que se capture. Talvez nem seja nada. Opinião semelhante tem um outro grande escritor, o libanês Amin Maalouf, ganhador dos mais importantes prêmios literários da França, país onde reside. Seu livro Les Identités Meurtrières (Identidades assassinas), ainda sem tradução no Brasil, deveria ser tomado como Bíblia laica para todos aqueles que, como eu, se apavoram com a facilidade com que a ideia de identidade nacional ou religiosa é aceita sem questionamento, ainda hoje, como se fosse um dado natural e não uma invenção dos homens.
Maalouf nasceu numa parte do mundo onde a identidade mata mesmo. E não me refiro só ao Oriente Médio, mas a todo o hemisfério norte, cuja história é marcada por guerras de afirmação nacional, racial ou religiosa. Les Identités Meurtrières não faz uma análise histórica ou sociopolítica dos vastos males que as questões “identitárias” causaram à humanidade. Ao contrário, o livro disseca a ideia de identidade coletiva do ponto de vista mais pessoal possível. Maalouf acredita, simplesmente, que, quanto mais variados são os fatores que nos formam, mais específicos somos. Cada um de nós é uma nação, e é justamente isso que nos individualiza.
Viés da Liberdade
Ele tem a mais óbvia razão. Para ilustrá-la, pensemos por exemplo numa menina brasileira, que more em São Paulo. Digamos que seu pai seja de origem católica e sua mãe, de origem judaica. Imaginemos que seus avós, bisavós, tataravós sejam poloneses, lituanos, libaneses, italianos, suíços, tupinambás... Só isso já tornaria essa menina bastante rara, mas, como aquilo que nos identifica é algo em eterna mutação, sigamos adiante. Concebamos que a menina não dê bola para as amarras obtusas da identidade herdada e que ao longo da vida, entre milhares de outras opções, ela também se converta ao budismo, estude design na Dinamarca e vá passar o resto da vida na Bahia.
Liberdade não é a ausência nem mesmo a restrição das relações de dependência. Pelo contrário, é a multiplicidade, a complexidade delas
Quanto mais diverso é aquilo que nos forma, mais único é aquilo que somos. E o tema desta Trip, interdependência, também pode ser pensado com o mesmo viés libertário. É simples assim. Aquele que depende de uma só pessoa é um escravo. Aquele de quem uma pessoa depende, exclusivamente, também pode se transformar num escravo. Liberdade não é a ausência nem mesmo a restrição das relações de dependência. Pelo contrário, é a multiplicidade, a complexidade delas. É um paradoxo semelhante ao da identidade. Somos mais livres à medida em que mais dependemos do outro. Potencializada, interdependência é interindependência.