A equação entre trabalho, tempo livre, lazer e ócio nunca pareceu tão desproporcional, mas não se engane: o equilíbrio está mais próximo dos privilegiados
Tente responder a uma questão simples: o que você faz no seu tempo livre? Busque pensar em atividades prazerosas que não estejam ligadas a objetivos específicos, que sejam praticadas com frequência e permitam “desligar” a mente e o corpo dos problemas cotidianos. Pense se há espaço na sua rotina para o autoconhecimento, para repensar aquilo que está dando certo ou não, o que pode melhorar... Para apenas pensar na vida. Na modernidade, crescemos com a ideia de que tempo livre é aquilo que “sobra” depois de cumprirmos as obrigações ligadas ao trabalho, que são primordiais e devem ocupar a maior parte do dia. No entanto, desde a Grécia Antiga, alguns pensadores encaram o ócio não apenas como uma sobra, mas como algo tão importante quanto o trabalho produtivo.
Repensar o tempo livre, além do descanso aos domingos e das maratonas de séries online, envolve uma “profunda transformação humana, sobretudo de ordem psicológica, afetiva e mental, imaginária e ideológica, ética e moral”, de acordo com Suzana Albornoz, professora aposentada de filosofia e sociologia da Universidade Federal do Rio Grande, que dedicou trabalhos à obra de Paul Lafargue.
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DR com a vida
Repensar a relação que se tem com o tempo livre exige repensar a relação mantida com o trabalho. Para Alexandre Pellaes, idealizador da Exboss, que oferece consultoria sobre modelos flexíveis de gestão empresarial, a ideia geral de trabalho ainda está atrelada ao sofrimento e à autoridade.
Alexandre Teixeira, jornalista e autor do livro Rotinas criativas: um antimanual de gestão do tempo para a geração pós-workaholic, comenta que grande parte do mercado ainda é pautada pela noção de “comando e controle”, uma expressão de origem militar que influenciou o início da era de administração de empresas, há um século.
Além das opressões no ambiente de trabalho, vivemos uma época de instabilidade, em que a oferta de emprego formal está em queda. De acordo com os resultados da pesquisa Mercado de trabalho: conjuntura e análise, divulgada pelo IPEA, em 2017, o número de trabalhadores continuou crescendo (1,25% na média entre 2015 e 2016), enquanto o número de pessoas com carteira assinada está em queda (decréscimos médios de 3,72% e 0,35%, para os anos de 2015 e 2016).
Muitos que trabalham por conta própria se sujeitam às jornadas de trabalho convencionais, respondendo às exigências da empresa. “A pessoa que presta serviço não é sua funcionária, mas acaba cumprindo regras de trabalho que são típicas de uma pessoa que trabalha na CLT”, observa Teixeira, em relação à terceirização de funções.
Como anda o nosso tempo?
O tempo humano não é construído apenas pela marcação das horas no relógio e dos dias no calendário. Percebemos o tempo a partir das narrativas que criamos sobre a vida. Se sentimos dificuldade em elaborar essas narrativas é porque, muitas vezes, não damos a devida importância ao ato de não fazer nada.
A jornalista Isadora Camargo relata as angústias de se manter uma rotina em que existe pouco ou nenhum espaço para o ócio. Pela manhã, ela vai à academia e, em seguida, para a redação, onde trabalha em diversas funções, com intervalo de quinze minutos para o almoço. À noite, dá aulas em uma universidade, cumprindo um cronograma rigoroso, que só acaba tarde da noite. Além destes compromissos, cursa doutorado em comunicação e usa os fins de semana para trabalhar em sua tese.
O economista e ex-presidente do Ipea, Marcio Pochmann, lembra que nas sociedades agrárias o tempo de trabalho era definido pela presença de iluminação natural, o que representava cerca de quatro quintos do dia. Na sociedade industrial urbana, com as conquistas dos direitos trabalhistas, o tempo de trabalho passou a representar menos da metade do dia.
“Hoje temos condições de pensar em uma sociedade em que o trabalho responderia talvez por um quarto do tempo de vida, mas isso não está acontecendo”, comenta, considerando que há uma contradição entre o avanço da tecnologia e a falta de uma discussão sobre a redução da jornada e as propostas de reforma trabalhista e previdenciária. “É claro que os ricos, os proprietários, de maneira geral, podem gozar de um tempo livre porque o financiamento de suas vidas não está vinculado ao salário, mas sim à remuneração de ativos que vêm de lucros e alugueis, por exemplo”, pondera.
Para Teixeira, existe um fosso que separa quem pode escolher a própria vida e quem não possui essa autonomia, considerando que as pessoas “que não têm poder de barganha, porque não têm um nível educacional tão alto, nem uma formação específica, são facilmente substituíveis e precisam de mais proteção. Na medida em que diminui a rigidez da legislação trabalhista, diminui a proteção dessas pessoas frente às decisões da empresa”.
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Por outro lado, quem tem o privilégio de escolher como viver, pode não enxergar a própria autonomia por conta da valorização do profissional “workaholic”, que se sacrifica em nome da carreira e trabalha por horas ininterruptas. Esse discurso está presente tanto no ambiente corporativo quanto nas produções midiáticas – assista filmes sobre grandes personalidades do mundo dos negócios e tire suas conclusões!
A ideia de que o trabalho é a única forma de se obter reconhecimento social persiste ao longo do tempo, afetando alguns segmentos profissionais mais do que outros. Pochmann dá pistas sobre os discursos que influenciam a desvalorização do tempo livre.
Hora de repensar a rotina
Não estamos caminhando para rotinas mais saudáveis, o que fica claro na pesquisa “Prática de esporte e atividade física”, divulgada em 2017 pelo IBGE. Cerca de 57% dos homens não se exercitam e os números são piores em relação às mulheres: duas em cada três não têm o hábito de praticar exercícios. A maioria das pessoas sedentárias são mulheres com baixa escolaridade.
Teixeira considera que quase sempre há uma margem para mudar a forma como vivemos. Se não é possível largar o emprego, é possível repensar a forma de locomoção, por exemplo.
O novo livro de Domenico de Masi, autor do best-seller O ócio criativo (Sextante, 1995), chama-se Alfabeto da sociedade desorientada: para entender o nosso tempo (Objetiva, 2017) e traz reflexões sobre a complexidade do momento em que vivemos e alguns questionamentos, tais como: há espaços públicos suficientes para aproveitarmos o tempo livre? Como vivenciar o ócio positivamente, agregando valores ligados ao conhecimento e às relações afetivas?
Jantar em família, praticar mais exercícios, meditar, não existe uma fórmula mágica, um modo certo de vivenciar o tempo livre. O que importa é não colocar a saúde mental e física em risco - e não deixar o tempo escapar.