Estar no controle ou ser livre?

por Milly Lacombe
Trip #254

Se você quer a liberdade é preciso se perder, estar errado e aceitar as mudanças. Se quer o controle é porque não entendeu nada

Não faz muito tempo eu li o verso do poeta britânico William Blake que dizia: “A eternidade é apaixonada pela produção do tempo”. Achei interessante e tentei refletir sobre o trecho. Duas coisas nos distinguem do restante dos seres deste planeta: a noção a respeito do tempo, ou da finitude, e a capacidade criativa. É isso o que nos torna humanos. Mas se a segunda delas nos mantém em êxtase, ajuda a seguir e constrói, a primeira aprisiona e destrói. A consciência da morte, e a onipresente sensação de que não temos como saber quando ela chegará, gera a necessidade de tentarmos controlar tudo ao nosso redor, criando a ilusão de que temos certezas e convicções a respeito da vida, das pessoas e do mundo. E assim vamos, fingindo que tudo está sob controle – do dinheiro aplicado, passando pela saúde e pelo futuro dos filhos, e chegando ao casamento que vai ser “para sempre” –, até que a vida, faceira, vai tirando os véus que cobrem nossos olhos.

Pode acontecer depois de exames de rotina que fazem o diagnóstico de um tumor, durante a planejada ida à casa de praia, quando o jatinho particular da família precisa fazer um pouso de emergência, ou com a descoberta de uma traição – eventos que não escolhem cor, credo ou classe e que carregam com eles a verdade que tentamos esconder todos os segundos de todos os dias: não temos o controle a respeito de nada. E nessas horas, chacoalhados por doses brutais de realidade, entendemos que as coisas mais verdadeiras estão em constante transformação.

Existe em sânscrito um verso que diz: aquele que pensa que sabe, não sabe; aquele que pensa que não sabe, sabe. Não saber deveria ser, portanto, um privilégio. Mas por que tanto apego às certezas se sabemos que elas não existem? Um mito a respeito da criação diz o seguinte: o Deus da identidade vivia feliz e pleno até que um dia disse “eu sou” e imediatamente sentiu medo porque passou a ser uma entidade no tempo. Pensou: “Do que tenho medo se sou a única coisa que existe?”, e imediatamente se sentiu sozinho. Depois sentiu desejo e criou o macho e a fêmea: fomos, assim, criados com esse medo que gera a necessidade de acharmos que temos controle sobre as coisas.

“Já parou para pensar no que aconteceria se tudo fosse permanente? Comer a mesma comida todos os dias, escutar as mesmas coisas ”
Osho

Aqueles abençoados com situações-­limite – como uma doença grave ou um acidente quase fatal –, mesmo mergulhados em dor ganham de presente a real percepção da incerteza e passam a valorizar o universo de todas as coisas subjetivas em detrimento daquele onde moram todas as coisas objetivas, o universo do ideal x o universo do material. No primeiro, sabemos que não sabemos de nada, e que tudo o que podemos fazer para passar bem por esta aventura terrena é sentir e experimentar. No segundo, vive-­se alienado por bens, posses, certezas, principados e poderes.

A gente passa
Quando os mais renomados físicos postularam que tudo no mundo é feito de átomos, e portanto tudo o que nos cerca é matéria, começamos a nos perder. Se tudo é matéria, o que vale é possuir, comprar, acumular. Mas, em décadas recentes, a física quântica derrubou algumas das mais inabaláveis certezas da física clássica e abriu espaço para que físicos se perguntassem: e se, em vez de matéria, tudo fosse feito de consciência? Nessa hora demos um salto em direção ao universo das subjetividades, dentro do qual o grande valor é ser, permanecer mergulhado em incertezas e seguir fazendo o que recomendou Nietzsche: “Vive como se o dia tivesse chegado”. Se na física clássica toda a quantidade tem um valor determinado, no mundo quântico passou a vigorar a regra da probabilidade. Deus não joga dados com o Universo, disse Einstein sentado sobre as certezas da física clássica. O físico britânico Stephen Hawking, mergulhado nas improbabilidades da física quântica, rebateu recentemente: "Deus joga dados, sim”.

Voltando a Blake, a verdade é que o tempo não passa; a gente passa, e essa constatação fere. A fim de evitarmos a dor, qualquer dor, vivemos com anestésicos na corrente sanguínea, e não nos damos conta de que a verdadeira crise é uma de estesia: já não suportamos sentir. E assim fazemos nascer o mais absurdo dos paradoxos: com medo da morte criamos a ilusão do controle, com ela evitamos sentir e, sem sentir, morremos antes da hora.

Mas talvez pior do que morrer antes da hora seja abrir mão da liberdade, essa coisa pouco valorizada, mas muito fundamental, que existe do lado oposto da segurança e do controle. Só na liberdade a alma cresce; e não há liberdade dentro de ambientes controlados. Então a busca pelo inseguro é em certa escala a busca pela vida. Mas a ideia de que o ser humano pode ser livre é apavorante para qualquer pessoa com poder, de pais a chefes e autoridades. Por isso somos condicionados a não bater asas neste mundo que se divide em aparência x essência e em ilusão x realidade.

Enquanto andamos pela vida fingindo acreditar que temos o controle sobre as coisas nossas certezas seguem desmoronando.

Insegurança é vida
Em 2008, o sistema econômico que sempre acreditamos ser o único possível entrou em colapso e desde então o planeta descambou para um tipo de desigualdade social jamais visto. Para o escritor Malcolm Gladwell, não se trata de uma crise econômica, mas de uma crise de certezas. Foi uma espécie de overdose de convicções que levou os maiores bancos do mundo a quebrarem e a levarem com eles toda a economia, ele diz.

“Aquele que beija a alegria enquanto ela voa, vive no amanhecer da eternidade ”
William Blake

Diante desse cenário, para onde podemos escapar? Para dentro, dizem os místicos. Foi no meio da floresta amazônica, em viagem que fiz no ano passado, que escutei um xamã dizer: “Você precisa meditar todos os dias por 20 minutos no mínimo. A menos, claro, que esteja muito ocupada: nesse caso medite por uma hora”. É chegado o tempo de achar o eterno em nós mesmos, abraçar a incerteza de tudo e deixar de temer. Fazer as pazes com a ideia de que cada um vive o próprio Armageddon – final de um tempo, começo de outro – muitas vezes antes da morte derradeira porque não se passa pela vida sem um Armageddon para chamar de seu.

Gosto também do que Osho disse: “A menos que você entenda a insegurança, não poderá entender a vida. Estações mudarão, o clima mudará, a primavera chegará. Tudo seguirá mudando, isso é insegurança. Você quer que tudo seja uma certeza, permanente. Mas já parou para pensar no que aconteceria se tudo fosse permanente? Comer a mesma comida todos os dias, dizer as mesmas coisas todos os dias, escutar as mesmas coisas todos os dias. E não haveria nem morte para interromper essa existência trágica”.

Pensei em Edward Snowden, que testemunhou a vida virar de ponta-cabeça quando contou ao mundo alguns segredos da agência de segurança americana, a NSA, que nos dizem respeito. A virada dele veio ao ver um executivo da NSA mentir em rede nacional de TV. Da noite para o dia Snowden decidiu mostrar documentos secretos que provam a extensão da espionagem a que estamos submetidos diariamente. Nessa hora ele passou de servidor público a “o homem mais caçado do mundo”. É o caso de alguém que voluntariamente topou se livrar da ilusão do controle e ao mesmo tempo chamar a atenção para o fato de estarmos sendo controlados e vigiados por algoritmos que trabalham a serviço de Estados e corporações. Sobre privacidade ele diz: “Alegar que você não se importa em ser espionado porque não tem nada a esconder é como alegar que você não liga para liberdade de expressão porque não tem nada a dizer”. Ou, como disse Pascal, “todos os problemas da humanidade vêm da incapacidade de se sentar quieto e sozinho em um quarto”.

O que enxergaríamos se nos entregássemos ao exercício sugerido por Pascal? Seríamos capazes de superar o medo e a necessidade de acreditar que estamos no controle? Encontraríamos o eterno em nós mesmos e perderíamos o temor da morte? Entenderíamos David Foster Wallace quando ele sugeriu que a verdadeira liberdade é controlar a única coisa sobre a qual temos controle, o pensamento? Outra vez Blake dá uma boa pista: “Aquele que se deixa prender por uma alegria rasga as asas da vida. Aquele que beija a alegria enquanto ela voa, vive no amanhecer da eternidade”.

Créditos

Ilustração: Eugenia Loli

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