Nos bufês, só o silêncio é bem-vindo. Por isso, aquele ”Hei!” no fim de cada frase do ”Parabéns a você”
Por Carlos Nader*
Semana passada, eu estava num bufê infantil pensando em Slavoj Zizek. A idéia que me veio à cabeça, no instante em que eu carregava uma Fanta numa mão e um minicheeseburger na outra, era a de que esse filósofo e psicanalista esloveno, que é um dos pensadores do momento, detesta o Carnaval carioca.
Eu não precisaria da ajuda de algum analista tão bom quanto o próprio Zizek para entender que a trilha associativa de lembranças e sensações me levou àquela opinião dele, uma das poucas de que discordo, em parte. Já de volta à praia da minha consciência, tendo sobrevivido ao maremoto infantil que dela ainda tentava me afastar, fiz uma aproximação visual óbvia entre a imagem da quase histeria mirim do bufê e a lembrança da nossa quase orgia ofi cial do sambódromo. E me perguntei: se o pensador esloveno já não gostava do apimentado bufê de sentidos adultos que o Brasil cultua a cada segunda lua nova do ano, o que acharia ele dessas festas de aniversário semanais em que as crianças brasileiras fazem com que um desfile da Viradouro pareça uma sessão de meditação coletiva em Kyoto?
A pergunta que fiz a mim mesmo ficou sem resposta. No momento em que eu me preparava para pensá-la, um Teletubbie roxo, cuja pele era feita de um carpete desbotado, provavelmente comprado na Jotapetes em 1997, colocou a mão no meu ombro e apontou para uma mesa colorida. Era a hora do parabéns. Levantei, busquei minha filha com a mão e me preparei para a comemoração coletiva. Os monitores do bufê puxaram o coro: “Parabéns a você, hei! Nesta data querida, hei! Muitas felicidades, hei! Muitos anos de vida, hei!”. Cantei, bati palma com eles, mas lá pelo meio da música não tive como impedir que mais pensamentos metacríticos invadissem minha cabeça. Peraí. Parabéns a você, hei!? Nesta data querida, hei!? Muitas felicidades, hei?! Que “hei” era este?
Eu não estava morrendo ainda, mas passaram como flashes audiovisuais pela minha cabeça cenas dos três últimos aniversários infantis que freqüentei e, de fato, em todos eles haviam enfiado um “hei!” espremido no fim de cada verso do “Parabéns a você”.
HEI HO, LET’S GO!
Eu só estaria aqui celebrando a diversidade cultural junto com a Trip se o “Parabéns a você” tivesse sido cantado em ritmo de funk carioca ou britpop. Não acredito que as tradições devam ser fossilizadas em vida. Ao contrário, é justamente quando se tenta imobilizar um bem cultural móvel que esse mesmo bem começa a morrer ou às vezes até, apodrecido, a se transformar num “mal cultural”. A história está lotada de exemplos. Arejar, mudar, adaptar são gestos sempre bemvindos no panorama da cultura. Só que algo me diz que o “hei” tem a ver com uma diversidade mais temporal do que cultural. Acompanhado de um espasmo quase epilético, ele foi colocado ali para eliminar o incômodo silêncio de um segundo entre os versos, num momento em que monitores de bufê têm que garantir que a alegria infantil seja ampla, geral e irrestrita.
Exagero um pouco, é claro. Achei até prazeroso dar um saltinho gritado entre um “nesta data querida” e um “muitas felicidades”. Só que, pelo menos para mim, é também muito prazeroso refletir sobre esse saltinho, dentro do contexto da época que estamos vivendo. Que mecanismo é esse que faz com que a principal reação que a gente tem a uma vida lotada de coisas e bits seja lotá-la ainda mais?
No bufê infantil, Mickeys e sacis, Sprites e miniquibes, convivem sem problema. Só tornam a festa melhor. As fusões culturais existem desde que o mundo é mundo e, hoje, definem o próprio mundo. Não me refiro à periferia, onde as mudanças costumam acontecer, mas ao centro do centro. O presidente dos EUA já se auto-classificou como um vira-lata. A lista dos dez homens mais ricos do mundo já tem líbano-mexicanos ou anglo-indianos. O mundo pop, então, parece abominar qualquer idéia de pureza. Até o universo fashion está a milhas de distância da Suécia olímpica da minha infância.
A diversidade cultural em si nem precisa mais ser comemorada com tanta ênfase. Já foi. A questão central agora é entendermos como podemos desfrutar melhor o banquete que ela já oferece. Que instrumentos deveremos usar e que atitudes deveremos tomar para exercer plenamente nossa capacidade de edição e garantir um equilíbrio prazeroso entre a informação e a refl exão, a fartura e o desprendimento, o Carnaval e a meditação, o “hei” e o silêncio?
*CARLOS NADER, 43, é um homem de mídia e diretor do documentário Pan-cinema permanente. Seu e-mail é carlos_nader@hotmail.com
Semana passada, eu estava num bufê infantil pensando em Slavoj Zizek. A idéia que me veio à cabeça, no instante em que eu carregava uma Fanta numa mão e um minicheeseburger na outra, era a de que esse filósofo e psicanalista esloveno, que é um dos pensadores do momento, detesta o Carnaval carioca.
Eu não precisaria da ajuda de algum analista tão bom quanto o próprio Zizek para entender que a trilha associativa de lembranças e sensações me levou àquela opinião dele, uma das poucas de que discordo, em parte. Já de volta à praia da minha consciência, tendo sobrevivido ao maremoto infantil que dela ainda tentava me afastar, fiz uma aproximação visual óbvia entre a imagem da quase histeria mirim do bufê e a lembrança da nossa quase orgia ofi cial do sambódromo. E me perguntei: se o pensador esloveno já não gostava do apimentado bufê de sentidos adultos que o Brasil cultua a cada segunda lua nova do ano, o que acharia ele dessas festas de aniversário semanais em que as crianças brasileiras fazem com que um desfile da Viradouro pareça uma sessão de meditação coletiva em Kyoto?
A pergunta que fiz a mim mesmo ficou sem resposta. No momento em que eu me preparava para pensá-la, um Teletubbie roxo, cuja pele era feita de um carpete desbotado, provavelmente comprado na Jotapetes em 1997, colocou a mão no meu ombro e apontou para uma mesa colorida. Era a hora do parabéns. Levantei, busquei minha filha com a mão e me preparei para a comemoração coletiva. Os monitores do bufê puxaram o coro: “Parabéns a você, hei! Nesta data querida, hei! Muitas felicidades, hei! Muitos anos de vida, hei!”. Cantei, bati palma com eles, mas lá pelo meio da música não tive como impedir que mais pensamentos metacríticos invadissem minha cabeça. Peraí. Parabéns a você, hei!? Nesta data querida, hei!? Muitas felicidades, hei?! Que “hei” era este?
Eu não estava morrendo ainda, mas passaram como flashes audiovisuais pela minha cabeça cenas dos três últimos aniversários infantis que freqüentei e, de fato, em todos eles haviam enfiado um “hei!” espremido no fim de cada verso do “Parabéns a você”.
HEI HO, LET’S GO!
Eu só estaria aqui celebrando a diversidade cultural junto com a Trip se o “Parabéns a você” tivesse sido cantado em ritmo de funk carioca ou britpop. Não acredito que as tradições devam ser fossilizadas em vida. Ao contrário, é justamente quando se tenta imobilizar um bem cultural móvel que esse mesmo bem começa a morrer ou às vezes até, apodrecido, a se transformar num “mal cultural”. A história está lotada de exemplos. Arejar, mudar, adaptar são gestos sempre bemvindos no panorama da cultura. Só que algo me diz que o “hei” tem a ver com uma diversidade mais temporal do que cultural. Acompanhado de um espasmo quase epilético, ele foi colocado ali para eliminar o incômodo silêncio de um segundo entre os versos, num momento em que monitores de bufê têm que garantir que a alegria infantil seja ampla, geral e irrestrita.
Exagero um pouco, é claro. Achei até prazeroso dar um saltinho gritado entre um “nesta data querida” e um “muitas felicidades”. Só que, pelo menos para mim, é também muito prazeroso refletir sobre esse saltinho, dentro do contexto da época que estamos vivendo. Que mecanismo é esse que faz com que a principal reação que a gente tem a uma vida lotada de coisas e bits seja lotá-la ainda mais?
No bufê infantil, Mickeys e sacis, Sprites e miniquibes, convivem sem problema. Só tornam a festa melhor. As fusões culturais existem desde que o mundo é mundo e, hoje, definem o próprio mundo. Não me refiro à periferia, onde as mudanças costumam acontecer, mas ao centro do centro. O presidente dos EUA já se auto-classificou como um vira-lata. A lista dos dez homens mais ricos do mundo já tem líbano-mexicanos ou anglo-indianos. O mundo pop, então, parece abominar qualquer idéia de pureza. Até o universo fashion está a milhas de distância da Suécia olímpica da minha infância.
A diversidade cultural em si nem precisa mais ser comemorada com tanta ênfase. Já foi. A questão central agora é entendermos como podemos desfrutar melhor o banquete que ela já oferece. Que instrumentos deveremos usar e que atitudes deveremos tomar para exercer plenamente nossa capacidade de edição e garantir um equilíbrio prazeroso entre a informação e a refl exão, a fartura e o desprendimento, o Carnaval e a meditação, o “hei” e o silêncio?
*CARLOS NADER, 43, é um homem de mídia e diretor do documentário Pan-cinema permanente. Seu e-mail é carlos_nader@hotmail.com