por Caio Ferretti
Trip #207

Este simpático senhor é um dos maiores inimigos da indústria do cigarro no Brasil

Pode não parecer, mas este simpático senhor é um dos maiores inimigos da indústria do cigarro no Brasil. Responsável pelo primeiro processo contra as empresas do fumo no país, o advogado Mário Albanese foi compositor de sucesso nos anos 50, inventor de um novo ritmo musical e pioneiro no futebol de salão

Uma placa de dois palmos de largura está pendurada ao lado da campainha na entrada do apartamento nos Jardins, em São Paulo. Em chamativas letras vermelhas, a inscrição diz: “Please, no smoking”. O pedido deixa claro que estamos no endereço certo: a porta de entrada para a casa de um dos maiores inimigos da indústria do fumo no Brasil. O senhor grisalho e elegante que nos recebe chama-se Mário Albanese. Ele é o advogado responsável por entrar com o primeiro processo na história do país contra as gigantes empresas fabricantes de cigarro e também é o criador da Adesf (Associação de Defesa da Saúde do Fumante). “As pessoas acham que nós defendemos o fumante. Na verdade, defendemos a saúde dele. Esclarecemos que o cigarro é fabricado para viciar, adoecer, mutilar e matar. Não tem outra expectativa”, diz Mário.

Em 1995, a Adesf entrou na Justiça com uma ação coletiva indenizatória contra a Souza Cruz e a Philip Morris. O argumento para o processo? A indústria do tabaco estaria prejudicando consumidores com publicidade enganosa e abusiva de seus produtos e infringindo o Código de Defesa do Consumidor. A iniciativa, então inédita no país, já era o suficiente para preocupar as empresas. Mas a associação conseguiu mais. Normalmente, quem processa deve provar o que diz. Nesse caso, não. “Conseguimos inverter essa obrigação”, conta Mário. “Eles é que teriam que mostrar que a nicotina não vicia e que não existe propaganda mentirosa. A ação foi um marco na luta antifumo.”

Foram vitórias seguidas na Justiça contra a indústria do tabaco. As empresas apresentavam recursos, mas todos eram derrubados pela associação. Mesmo assim, Mário sabia que estava lidando com uma indústria poderosa. “É muito difícil lutar contra essa gente, eles fazem da mentira uma coisa santa. Juízes chegaram a ser afastados porque deram parecer contra a indústria.” Quando tudo parecia caminhar bem, chegou a hora do choque de realidade: uma juíza deu parecer favorável à engrenagem tabagista. “Eu não dormiria tranquilo se fosse essa juíza. Alegar, como ela alegou, que não existe propaganda enganosa e abusiva na publicidade do fumo é um absurdo! É dar tapa na cara da gente. Por coincidência, na mesma época do parecer havia uma exposição no Incor mostrando exatamente como a indústria engana com a propaganda. Mas essa história ainda não acabou.”

Assim como a ação coletiva, todos os outros processos movidos pela Adesf tiveram o mesmo desfecho: a vitória final das empresas de tabaco. Perguntado sobre qual o argumento utilizado pela indústria para ganhar sempre, ele se exalta: “É exatamente essa a questão, meu querido! Eles nunca apresentaram uma prova sequer de que têm razão. Nada! Isso é chamar todo mundo de trouxa! Eles dão o argumento surrado do direito de escolha da pessoa. Como você pode falar em liberdade de escolha para uma criança que ainda não tem opinião de nada? Porque ela é o alvo dessa publicidade!”. Mas e as advertências nos maços? “O que adianta advertência para uma pessoa que já está escravizada? Ela foi cooptada quando criança, depois já não tem mais volta.”

Alvo de espionagem

Na parede do escritório de Mário Albanese está pendurada uma página inteira do jornal Folha de S.Paulo do dia 3 de março de 2008. O título diz: “Souza Cruz espionou ativistas antifumo, sugere documento”. Os tais ativistas, no caso, eram Mário e seu sócio na criação da Adesf, Luiz Mônaco. Os dois sabiam que estavam comprando uma briga difícil, mas não imaginavam o tamanho do problema. “Lembro que na época o repórter me telefonou e disse: ‘Mário, você precisa se cuidar. Vou para os Estados Unidos e quando eu voltar nós conversamos’. Ele viajou justamente para apurar essa história. Quando voltou veio aqui em casa e me contou tudo. Fiquei perplexo.”

As notícias de espionagem e as derrotas na Justiça fizeram Mário desanimar, mas não desistir. Parte da motivação que o fez seguir na empreitada contra a indústria tabagista está ligada a sua família. Seu pai morreu com pouco mais de 40 anos, vítima do cigarro. “Foi uma tristeza muito grande não ter conseguido fazê-lo parar de fumar”, diz. O único dos cinco filhos que fumava se envolveu também com drogas mais pesadas. “Isso me fez muito mal, não sabia como lidar com o problema. Minha história de vida não tinha nada a ver com drogas, sempre fui muito do esporte.” As fotos espalhadas pela casa não o deixam mentir. Um retrato em preto e branco mostra um atlético jovem fazendo uma parada de mão. A seu lado, um troféu de futebol de salão. “Quando você gosta de esporte acaba se atirando em tudo. Mas me defini pelo futebol de salão, uma modalidade que nós praticamente iniciamos. No começo da década de 50, não tinha federação, não tinha nada. Jogávamos em quadra de basquete com uma bola recheada de crina de cavalo.” Os atuais 80 anos de idade já não permitem muito esforço, apenas “algumas subidas de escada” para fugir do sedentarismo. Mas as mãos ele ainda exercita e muito.

Maestro Mário

Na sala de seu apartamento estão dois pianos. Um serve apenas de estante para vários porta-retratos. O outro, Albanese usa para tocar pelo menos dez vezes durante a visita da Trip. Para muitos ele não é o doutor Mário, advogado, mas sim o maestro Mário, músico e compositor. O responsável por criar um novo ritmo musical nos anos 60, o jequibau. “É um ritmo sui generis, com um compasso de cinco tempos, diferente do tradicional, que são quatro.” Está até no calendário: 13 de agosto, em São Paulo, é dia do jequibau. Por conta da criação, foi aos EUA convidado por um produtor americano para gravar dez músicas do novo estilo. A capa do LP lançado em 1965 dizia: “O excitante novo ritmo do Brasil”. Foi notícia na Billboard, muitos artistas regravaram suas composições de jequibau no exterior. No Brasil, nem tanto. “Um cara que poderia ter feito algo era o [Wilson] Simonal, um amigão meu. Apresentei-lhe umas músicas, mas ele não levou adiante. Outra foi a Elis Regina. Fui a sua casa mostrar um trabalho, mas ela não quis gravar porque disse que a música falava de Deus.” Restou a Mário se valer das mais de 250 composições que havia feito antes de criar o jequibau. Essas fizeram mais sucesso por aqui. No final da década de 50 chegou a ser gravado por Agnaldo Rayol, depois por Jair Rodrigues. A vida na música só não foi ainda mais intensa porque a mãe de Mário não deixou. Queria ver o filho em outra carreira. Insistiu até que ele se inscreveu na faculdade de direito da USP e em educação física. Foi aceito nas duas, mas optou pelo direito. Mário não se arrepende da escolha, mas talvez a indústria do cigarro estivesse mais feliz se o doutor Mário Albanese fosse um professor de esportes ou somente o maestro Mário.

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