por Carlos Nader
Trip #113

A declaração de quem passou a vida botando defeito nesse polêmico e indispensável eletrodoméstico

Logo depois de uma palestra que eu dei outro dia em Curitiba, uma estudante de comunicações se aproximou meio decepcionada e disse: "Você é meio bonzinho. Eu leio todas as suas colunas e achei que você fosse bem mais bravo. Afinal, você gosta ou não de TV?".

Olhei fundo nos olhos da menina para checar se ela estava fazendo uma reclamação. Ela estava. Ela queria ter encontrado o cara cheio de opinião que escreve estes textos aqui. Encontrou apenas eu, de perto, normal. Tentando encarnar o papel de autoridade, procurei uma resposta inteligente: "Mando um discurso rápido sobre alteridade do eu midiático". Lembro Fernando Pessoa e seus heterônimos? Cito Guy Debord? Neal Gabler? Ou vou logo dando um peteleco na orelha da menina, para ver se ela fica mais satisfeita??.

Não fiz nada, é óbvio. Devo ter no máximo soltado algum sorrisinho pusilânime, que só deve ter aprofundado a decepção da estudante. Ela foi logo embora. E me deixou pensando em mim, bom, não exatamente em mim, mim mesmo, mas no cara que está sentado aqui na minha cadeira, batendo nas teclas do computador. O escravo mensal das opiniões da própria coluna.

Eu, eu mesmo, gosto de TV. Meus programas prediletos se dividem em três categorias. A primeira é daqueles que um cara como eu deve gostar, e eu gosto mesmo. O delicioso Pé de Quê?, da Regina Casé e do Estevão Ciavatta. O revolucionário projeto de regionalização global do Hermano Vianna. Os Simpsons. Batman. Seinfeld. Ensaio. Guel Arraes. Jorge Furtado. Pedro Cardoso. Casseta. Marcelo Tas. Cazé. Abujamra. Os documentários do GNT. A BBC. Os clips do AMP. E tantos outros. A TV atual tem um lado maravilhoso. Quem teve uma juventude de cinco canais jamais se poderia imaginar assistindo a uma entrevista de meia hora com um filósofo como Richard Rorty ou com um pop star como Richard Aschcroft.

A segunda categoria de programas é aquela de que um cara como eu não deve gostar, mas eu adoro. Pode encaixar aí, sem culpa nenhuma, alguns personagens de A Praça É Nossa e afins, esses macunaímas eletrônicos, heróis sagrados da cultura popular, como o Zé Bonitinho, Baltazar da Rocha ou aquele que diz "Sambarilove".

Obrigado por existirem, amados mestres. E já que a estudante de Curitiba pediu polêmica, digo logo que achei a Casa dos Artistas, só a primeira, uma aula de TV, um biscoito fino metalinguístico para as massas esfomeadas de sentido televisivo. Querem mais? Eu aplaudo de pé surgimentos midiáticos meteóricos como o da Lacraia, bicha pobre, preta e sem nenhum medo de ser feliz em horário nobre nacional.

Sambarilove it?

Para a terceira categoria, eu não queria dar muita bola. É a dos programas que "o cara como eu" não deveria gostar, e eu não gosto mesmo. Mas não há como negar que são programas que conseguem às vezes roubar minha atenção com golpes literalmente abaixo da linha da cintura. Sabe aquele momento corpão de um programa da Luciana Gimenez? Ou alguns instantes do sensacionalismo esbaforido de um Ratinho? Ou ainda o tânatos raso de um Cidade Alerta? São difíceis de resistir, admito. Mas eu não consigo assisti-los com olho de antropólogo pop. Em uma palavra, acho que são nefastos. Em horas mais otimistas - mais antropólogas pop - fico também achando que esses programas venenosos carregam o próprio antídoto. O excesso é excessivo.

O problema da televisão não é o conteúdo. Para ele há o controle remoto. O que me incomoda é um traço mais endêmico do caráter da TV. É o fato de que o contato televisivo não tem mais começo nem fim. A maioria dos programas é assistida a partir do meio, numa competição tensa com todos os outros eletrodomésticos da casa e com todos os outros programas da própria TV. Claro que o zapping tem um lado bacana, não linear, interativo - para usar palavras de uma moda já velha -, mas toda essa suposta liberdade também tem um enorme componente gerador de ansiedade, a doença central do nosso tempo. É bem diferente da experiência do cinema, por exemplo, quando há uma escolha definida e definitiva, uma concentração dedicada, um sagrado apagar de luzes. Um ritual. A TV é uma destruidora de rituais. Inclusive os da casa, da conversa, da leitura. Contra isso, só indo mais fundo no uso do próprio controle remoto. É nele que fica a tecla "off".

Garota de Curitiba, não é que eu desgoste da TV. Pelo contrário. Eu gosto demais.

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