William, 19 anos, pixador, pai de família e surfista de trem. Sim, eles ainda existem
O rapaz em cima do vagão é William, 19 anos, pichador, pai de família e surfista de trem. sim, eles ainda existem. a "categoria" apareceu primeiro em nossas páginas, ficou duas décadas longe da mídia e tem raros remanescentes por aí
"O trem balangou forte e jogou ele pro lado a milhão. Já caiu quicando, se arrebentando, quebrou perna, quebrou braço, quebrou tudo. Corremos com ele pro hospital, mas não teve jeito." AGN Asteca, codinome do pichador e surfista de trem, morreu poucas horas depois desse tombo, aos 21 anos. Quem conta é William, que com AGN aprendeu não só a surfar, mas também as manhas de pichar no alto de prédios, invadindo condomínios, enganando porteiros, arrombando portas ou escalando pelo lado de fora. William conta essas histórias minutos depois de ter passado, em pé no teto de uma composição em movimento, pela mesma curva em que AGN caiu. E você não tem medo de morrer não, William? "Até tinha um pouco, e depois do finado dei uma parada. Mas aí fiquei revoltado e voltei a surfar mesmo. Não tem pra ninguém aqui não, tio."
A fatalidade – ou "desavença", como dizem os manos – foi em 2007, nos trilhos próximos à estação Comandante Ferraz, periferia de Osasco. William mora ali perto, no Munhoz Júnior, bairro ainda mais pobre que a já carente vizinhança da estação, na divisa com Barueri. Foi por ali que a reportagem de Trip esteve com o fotógrafo e cinegrafista João Wainer, que assina com o irmão Roberto T. Oliveira a direção do documentário Pixo, em que William aparece (leia mais no texto seguinte). A intenção era registrar a performance no teto do trem, o que fizemos esperando debaixo de sol forte, em uma passarela baixinha ali perto, um lugar estreito, imundo e cheio de camisinhas usadas, ponto de encontro de gays da região.
A imagem do "surfista de trem" começou a ficar famosa em 1988, com a reportagem de Trip sobre o assunto (veja texto ao lado). Depois disso, outras imagens pipocaram aqui e ali, mas há duas décadas esse pessoal andava sumido. Ou, pelo menos, sumido dos olhos da mídia e de quem mora longe de fundões da periferia.
No domingão em que estivemos lá, além de William (que assina "Operação" nas paredes) estavam seus amigos Biscoito (União 12), parceiro de latinhas e outro aficionado por topos de prédios, e Djan (Cripta), pichador mais velho – 25 anos – e respeitado, que há tempos filma as ações da turma, material que edita e vende em forma de DVDs. William, Biscoito e Djan não conhecem muita gente que ainda surfe trem, fora os "finados", forma respeitosa pela qual se referem a todos os colegas que morreram, todos de forma violenta. De fato a atividade não é assim uma pelada no campão. O trem balança de um lado pro outro e o maior perigo é a companhia constante de um fio de altíssima tensão à altura da cabeça, que pode matar com um leve toque. Por isso mesmo nas imagens o pessoal está sempre abaixado. "Mas na retona, quando tá suave, até dá pra ficar em pé, tranquilão", desbaratina William.
Não bastasse, ainda tem os seguranças, fator que agendou nossa reportagem para o domingo, dia mais tranquilo nas linhas da CPTM, a não ser quando a galera está indo ou voltando de jogo de time grande em São Paulo. William sabe o que acontece se parar na mão deles. "Já me pegaram, levaram pra uma salinha e me deram uma coça. Falavam: 'Por que você tava em cima do trem?'. E eu: 'Sei lá, por aventura?'. 'Gosta de aventura, é? Então toma!?' E batiam mais. Mas tudo bem, depois me liberaram", conta, com jeito de quem já viveu bem mais do que os 19 anos que constam no RG.
William nasceu no Rio e veio bebê para São Paulo, com os pais. Quase todo fim de ano volta à cidade, fica na casa de parentes no morro da Providência. "Maior morrão da hora, dá até pra ver o Cristo de lá." Surfou uma vez em um trem de subúrbio carioca, a caminho de um baile funk. Gosta muito de ir à praia, mas nunca surfou no mar, sequer tentou. Não tem sotaque, mas guarda ligações com a cidade. Quando entrou na estação para a sessão que seria registrada, por exemplo, fez questão de trocar de camisa. Pôs uma do Flamengo. "Vai ser mais legal quando eu mostrar lá."
Em São Paulo, a vida não tem sido fácil. Pobre e analfabeto, William só consegue ler algumas palavras curtas, e mesmo assim com dificuldade. Para ele, é mais fácil entender as pichações. As que já viu pelo menos uma vez, reconhece e lê de longe. As demais, precisa da ajuda do amigo Biscoito para decifrar. O último trabalho fixo que teve foi descarregando caminhões de abacaxi. "E também já fiz uns 12 por aí." A expressão, como tantas outras de William, pede uma breve tradução: "fazer uns 12" vem do artigo de mesmo número, parte da legislação sobre drogas do Brasil, e refere-se ao tráfico.
Bom menino
Pichação, surf de trem, pobreza e drogas, tudo junto, podem pintar um quadro feio de William para o leitor. O rapaz, entretanto, é tímido, discreto, fala baixo e pouco. Parece mesmo um bom menino, acredite. Inspira confiança e assusta mais pelo destemor do que pelo currículo. Na porta da estação, acendendo um baseado às quatro da tarde com a naturalidade de quem toma um guaraná, William fala de novo do parceiro AGN. "Quando eu ainda era de menor, a gente pegava trem direto só pra ficar surfando, ficava indo e voltando até Itapevi", relembra, com um ar nostálgico de quem fala de algo muito antigo, mas que não faz nem dois anos. Hoje surfa menos, fazia quatro semanas que não se equilibrava em um teto em movimento.
Agora também é pai de família, tem mulher e filho esperando em casa. "O Hugo tem só 7 meses e já tá nas caixas-d’água", diz, orgulhoso por ter escrito o nome do filho no alto de alguns prédios. Apesar de a mulher também estar desempregada, diz que vai tudo bem em casa. "Por enquanto está suave criar o garoto, depois vamos ver. E meu pai ajuda, às vezes põe uma moeda pra mim." Medo de morrer ele não tem, OK. Mas, William, e se seu filho resolvesse surfar trem, você não ia ficar preocupado? "Lógico, muito."
Pixo, logo existo
Documentário joga luz sobre a pixação paulistana e mostra a vida de jovens como William
Se você acha que pixador é tudo marginal e que as inscrições nas paredes por aí são vandalismo, vale assistir ao documentário Pixo, dos irmãos João Wainer e Roberto T. Oliveira. O filme será exibido pela primeira vez no Brasil agora no fim de outubro, na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, e pode ajudar nessa certeza. Ou não. A obra mostra, pela primeira vez, na real, essa atividade popular entre jovens da periferia e insinua que a história é bem mais complexa do que um muro "sujo".
"Passei a reparar nas letras. Era como se eu morasse na China e não soubesse ler chinês", comenta Wainer, fotógrafo colaborador de diversas publicações, dentre elas a Trip. A ideia do filme veio quando ele teve contato com os DVDs de Djan, que nos últimos anos acumulou mais de 200 horas de gravação de ações de pichação que alimentaram DVDs independentes.Muito do material de Djan está no filme, que foi exibido pela primeira vez em julho, na Fundação Cartier de Paris, em uma exposição sobre arte de rua. Outros registros do documentário foram feitos pelos irmãos, que assinam a direção de A ponte, distribuído para assinantes na Trip #173. O filme também voltava seus olhos para a periferia paulistana, mostrando como o rio Pinheiros cria uma barreira não apenas física, mas também social.
Pixo vem embalado pelo rap e tem inédita de Sabotage, morto em 2003. Traz cenas fortes como a escalada de Biscoito (que acompanhou William na surfada) e amigos em um prédio, por 20 andares. O áudio do microfone de lapela que os rapazes usavam, sincronizado com a filmagem à distância, evidencia o risco iminente de morte. O objetivo, o de sempre: escrever lá no alto o seu nome e o de seu grupo. Há ainda cenas inéditas da invasão-pichação da Faculdade Belas Artes e da última Bienal de Arte de São Paulo. "O pixo é a forma dessa molecada existir. Melhor ser odiado do que ignorado, do que nem saberem de sua existência", diz Wainer. "Ao lado dos motoboys, os pixadores são o que há de mais representativo e genuinamente paulistano."
Assista vídeo de William surfando em Osasco