Goldman: ’O que sei das circunstâncias que levam as pessoas a se corromper?’
O que sei das circunstâncias que levam as pessoas a se corromper? Imbuídos de medo, eu, você e os condenados do mensalão somos capazes de atos impensáveis. Não justifico ninguém, mas o universo é um lugar complexo
Em meados da década de 80, fui convidado para produzir e dirigir um documentário para uma rede de televisão italiana. O orçamento era relativamente baixo e o projeto já estava aprovado pelos responsáveis pela programação. Mas o contrato – e, por consequência, o dinheiro para a produção – estava parado na administração da rede. Todas as semanas eu ia até a sede indagar e só recebia respostas evasivas. Comecei a ficar tenso, pois já estávamos na metade de julho e o documentário tinha que ser rodado até setembro, no máximo.
Procurei a chefe da administração, uma espécie de Sophia Loren da periferia, uma velha empetecada com muitas joias, arrogante e cínica. Expliquei a situação para ela, eu tinha muita pressa em começar a produção. Ela sorriu e disse: “Pergunte à sua amiga brasileira se tem um jeito de apressar as coisas”. Minha “amiga brasileira” era uma distribuidora que vendia filmes para essa rede e assinava os contratos com esta mesma senhora. Telefonei para a minha amiga e descrevi a situação. Ela começou a rir. “Se você quiser mesmo fazer esse documentário, vai ter que rolar uma grana para a velha”, ela respondeu. Baseada no orçamento do filme, minha amiga fez um cálculo e me disse para comprar US$ 2 mil e entregar para a velha. Assim fiz. Pus um envelope na escrivaninha dela e disse: “Minha amiga sugeriu que eu entregasse isso para a senhora”. “Volte depois do almoço”, a velha disse. Às 2 e meia da tarde o contrato já estava assinado.
Depois disso, fiz vários outros trabalhos para essa mesma rede. Em cada um deles a velha recebeu um presentinho. Não precisava ser em dinheiro. Quando estávamos negociando um contrato para fazer uma filmagem em Londres, ela disse sem o menor pudor: “Adoro aquelas mesinhas de chá inglesas, antigas. No mercado das pulgas de Islington você pode encontrar uma para mim”. Depois da filmagem, voltei para Roma com as tais mesinhas de chá.
FIM DE FEIRA
Tenho nojo dessas memórias patéticas, mas elas me ajudam a pensar. Ao fazer o que era mais conveniente para mim, me igualei àquela Sophia Loren de fim de feira. A vontade de fazer aquele documentário não justifica a escolha de fazer parte daquela máquina corrupta. E, crucialmente, me pergunto: “Será que eu faria isso novamente?”.
Preferiria nunca ter que recorrer a isso, mas, dependendo da situação, é claro que faria. É em torno dos “dependendo da situação” que gravitam quase todas as nossas questões morais. O que sei eu das circunstâncias que levaram a velha – e todos os corruptos do mundo – a se corromper? As razões deles podem ser muito mais fortes do que meu vil desejo de dirigir um documentário. Um filho doente? Uma profunda vontade de se afirmar no mundo? O medo da pobreza e da solidão? Assim como Hitler ou Stalin, imbuídos de medo, eu, você e os condenados do mensalão somos capazes de atos impensáveis, incoerentes, irresponsáveis e corruptos. Não justifico ninguém, nem a mim mesmo. Mas o universo é um lugar complexo, incoerente – uma equação irresolúvel.
Desconfiar de nós mesmos – tanto quanto desconfiamos do mundo – é um hábito que precisa muito ser cultivado. Vivemos dias muito confusos. Precisamos com urgência buscar respostas mais verdadeiras, que possam ir além da banalidade do autointeresse.
*Henrique Goldman, 51, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles.