Sociologia do humor

por Diogo Rodriguez

Contamos piadas sobre o que temos vergonha de falar, diz sociólogo do humor britânico

Christie Davies, professor e pesquisador da universidade de Reading, na Inglaterra é  especializado em sociologia do humor. Conduziu estudos comparativos sobre o humor de países como França, Bélgica, Estados Unidos e Inglaterra. São décadas coletando piadas de todos os lugares do mundo, mas Davies diz nunca se cansar delas.

Correu riscos para conseguir material de pesquisa: nos anos 60, tentando extrair as piadas clandestinas nos países soviéticos, Davies teve de virar um agente acadêmico duplo: para fins oficiais, declarava que estava fazendo uma pesquisa totalmente diferente da que iria conduzir, para não ser barrado pelos comunistas. Uma vez dentro, durante o dia fazia a pesquisa "oficial"; à noite coletava piadas.

A Trip procurou o professor Davies para saber o qual é o papel do humor nas sociedades ocidentais, acabou descobrindo o porquê dos brasileiros tirarem sarro dos portugueses e a entrevista terminou em piada.

O que estuda a sociologia do humor?
No meu caso, eu fiz estudos comparativos e históricos, o que significa situar o humor em países e contextos históricos distintos. Mas conheço, por exemplo, sociológos que estudam o humor em pequenos grupos, ou como ele é usado na retórica [de discursos].

Você fez pesquisa de campo sobre piadas em países comunistas na época da Guerra Fria, e teve de fingir que estava pesquisando outra coisa.
Eu era ligado a universidades nesses países e ia para estudar aspectos do humor que os governos [comunistas] aprovavam. Enquanto eu estava lá, falava com as pessoas para conseguir informações a respeito do humor que não era aprovado. Eu tinha uma vida dupla: eu encontrava com as pessoas de maneira oficial e nós falávamos sobre um tipo de humor; em outro lugar, eu encontrava outras pessoas e nós falávamos sobre um tipo de humor diferente.

E as pessoas falavam com você?
Sim, mas dependia do país. Na Hungria, não encontrei problemas, elas eram muito abertas. Na Bulgária, elas eram cuidadosas, mas falavam, assim como na Eslováquia. Mas nas terras checas, era difícil [por causa da repressão], então os que falavam eram os dissidentes; nos outros países eram apenas cidadãos normais que ficavam muito felizes em contar as coisas, desde que não pensassem que eu fosse um informante [do governo].

Você alguma vez teve algum problema fazendo essa pesquisa "secreta"? Nunca foi pego?
Não. Ninguém soube. Eu ia para lá convidado por instituições desses países com dinheiro oficial de ambos os governos, o britânico e os comunistas. Eu fiz a pesquisa, escrevi e publiquei, sem problemas. E o que eu fazia escondido, ficava escondido.

A pesquisa escondida foi publicada?
Sim. Publiquei tudo.

Que papel o humor tinha para as pessoas desses países?
Era como em qualquer outro lugar do mundo: as piadas eram uma maneira de dizer coisas que eram proibidas. Por exemplo, quando a Princesa Di morreu no acidente de carro. Oficialmente, era para ser uma época de luto, mas, na verdade, as pessoas não estavam se lixando. É um tipo de liberdade, é um jeito de quebrar as regras. Quando eu fui aos EUA coletar piadas, descobri que as piadas de lá eram impublicáveis, principalmente sobre os negros. Há uma enorme quantidade de piadas sobre negros nos EUA, mas, obviamente, elas não chegam à mídia e as pessoas negam sua existência. As classes média e baixa americanas as contam o tempo todo. Num certo sentido, pode-se dizer que meu trabalho nos EUA também foi sob disfarce [risos].

"Quando eu fui aos EUA coletar piadas, descobri que as piadas de lá eram impublicáveis, principalmente sobre os negros"

O que a sociologia do humor pode nos dizer sobre uma sociedade?
Pode revelar sobre o que as pessoas têm vergonha de falar. Por exemplo, na Grã-Bretanha existem poucas piadas sobre política.

Por que?
Porque todos podem falar sobre política de maneira livre. As pessoas podem expressar raiva, nojo, e ódio em relação aos políticos e nada vai acontecer com elas.

Sobre o que são as piadas na Grã-Bretanha, então?
As mesmas piadas sobre sexo que são contadas em qualquer país, sobre grupos étnicos, e nas piadas são ditas coisas que não entram no discurso oficial.

Qual é a diferença entre as piadas antigas e as atuais?
Hoje há muito menos piadas sobre religião e acredito que a razão para isso é o fato de ela não ser mais central, então não faz mais sentido tirar sarro.

Com todo esse material que o senhor juntou por causa das pesquisas, qual foi sua principal descoberta?
A principal foi que todo país tem suas piadas sobre estupidez que são contadas a respeito de algum grupo. Por exemplo, no Brasil, com os portugueses. Eu tenho muitas piadas de português. Todo país tem um grupo como esse. Em segundo lugar, as pessoas que contam as piadas e as pessoas que são o alvo das piadas são sempre muito similares. Você não conta piadas de estupidez sobre quem é diferente de você. Creio haver uma razão para isso. Quando eu fui para o Brasil, as pessoas me contaram que não entendem o português falado pelos lusitanos. Na Grã-Bretanha, os ingleses não entendem o inglês dos irlandeses. Os franceses contam piadas a respeito dos belgas [que também falam francês]. Se você se olha em um espelho curvado, você vê uma versão estranha de si mesmo. Se alguém fala comigo em polonês, eu não faço ideia do que ela está falando. Mesmo que ele fale um inglês ruim, eu sei que não consigo falar polonês. De uma certa maneira, estamos em um nível de igualdade. Quando um irlandês fala em inglês comigo, me sinto em vantagem porque é a "minha" língua". O irlandês não tem outra língua, e o jeito que ele fala é engraçado. Isso também é verdade em outros lugares do mundo.

"As pessoas que contam as piadas e as pessoas que são o alvo das piadas são sempre muito similares. Você não conta piadas de estupidez sobre quem é diferente de você"

 

Das piadas que você ouviu no Brasil, qual foi a que você mais gostou?
Uma de um português que foi a Londres aprender inglês. Depois de um tempo lá, ele vai ao médico porque ficou burro. Ele não conseguia mais falar. O médico o examina e perguntam para ele: "Qual é o problema? Por que ele não consegue mais falar?". "Bom, ele ainda não teve tempo de conseguir aprender a falar inglês, mas esse tempo foi o suficiente para que esquecesse o português!". Uma outra é a seguinte: houve uma guerra entre a Argentina e a Grã-Bretanha [a Guerra das Malvinas]. O português diz: "Não entendo essa guerra! Existe uma solução muito simples para isso. As Falklands ficam para os britânicos e as Malvinas para os argentinos".

E qual é a sua piada favorita?
Essa é difícil. As minhas piadas favoritas são as judaicas. Eu não sou judeu, mas eu as estudei por muitos anos e decidi que são as melhores. Vou te contar uma que ninguém nunca entende. Dois gentios [expressão que os judeus usam para designar os que não são judeus] conversam: "Como vão os negócios?". O outro diz: "Estão ótimos. E obrigado por perguntar".

É, eu não entendi. O senhor pode me explicar?
Não vou explicá-la a você. O bom dessa piada é que eu consigo saber se meu público é judeu, porque só os judeus riem.

Então eu tenho de ser judeu para entender?
Exatamente. Essa piada é fantástica. Nem para a minha esposa eu expliquei. Ela fica muito brava. Mas posso contar uma das minhas piadas soviéticas favoritas. Um padre ortodoxo morre e ele vai para o céu. Perguntam a ele se há algo que ele gostaria de ver antes de entrar, porque depois que estivesse no céu, era só isso que ia ver. Então, ele pede para ver como é o inferno. No inferno ele vê um lago de lama escaldante. Dentro, ele vê Hitler e Stalin. Hitler está com lama até o nariz e Stalin até a cintura. O padre fica indignado e diz: "Vejam bem, eu fui mandando a campos por Hitler e Stalin e os dois são igualmente maus. Por que o Stalin está com lama só até a cintura?". E no inferno respondem: "O senhor tem que entender: Stalin está em cima dos ombros de Lênin". Esse é o tipo de piada que se costumava contar nesses países. Ela tem diferentes facetas. Uma é que ela tira sarro do culto a Lênin, algo essencial na União Soviética, dizer o quanto Lênin era maravilhoso. Ela também diz algo que é impensável dizer na União Soviética, que Stalin e Hitler são mais ou menos a mesma coisa. Nada disso era aceitável.

É uma afirmação, então.
Uma afirmação embrulhada em humor. Outra coisa a se notar é que não é necessário concordar com ela para rir. Uma das coisas que descobri nos arquivos é que até mesmo a KGB ria dessas piadas, mesmo quem tinha muita fé no sistema ria das piadas.

Saiba mais: página de Christie Davies na universidade de Reading

fechar