Sobrevivência da espécie

Caramuru: ”A ciência retirou do ser humano distinções exclusivas que julgávamos possuir”

A ciência retirou do ser humano distinções exclusivas que julgávamos possuir. Mas temos a cultura, que nos permite saber o que temos feito e o que precisamos fazer se quisermos sobreviver

Entre as muitas dicotomias estúpidas que abundam no mundo das ideias, uma das campeãs é a que opõe homem e natureza. O argumento original para essa forma de ver as coisas, não poderia deixar de ser, vem das religiões. As judaico-cristãs em particular deram ao homem uma série de privilégios: fomos criados à imagem e semelhança de Deus e todos os outros seres do planeta estão à nossa disposição. De algumas centenas de anos para cá, porém, o pensamento científico tem recolocado pouco a pouco as coisas nos seus devidos lugares. Pesquisas mais recentes têm retirado do ser humano uma série de distinções exclusivas que este julgava possuir, tanto as sublimes quanto as nem tanto. Por exemplo, sabemos que os macacos-verdes dominam uma linguagem razoavelmente complexa, que os morcegos podem ter comportamento altruísta e que, por outro lado, lobos e chimpanzés cometem genocídio, que ocorrem estupros entre patos e orangotangos, que existe machismo entre os golfinhos e que há guerra organizada, escravidão e rebelião entre as formigas.

Ainda assim, pode-se argumentar que a “alta” cultura, aquela do pensamento abstrato, capaz de criar arte, de fazer ciência e de inventar deuses e ideologias, é atributo unicamente humano. Estaríamos então falando de graduação, e não de exclusão. Será que existe um “homem natural”, de certa forma vazio, que somente quando preenchido pela cultura é que alcança a tal “condição humana”? Bobagem. Você já parou para pensar que, em vez de externa, a cultura é parte integrante de nós? Em outras palavras: quando nos tornamos o que somos (Homo sapiens sapiens), há cerca de 200 mil anos, nós já carregávamos uma série de traços culturais herdados de nossos antepassados. Por exemplo, nós já surgimos, enquanto espécie, com a capacidade (e a necessidade) de nos comunicar através da linguagem e de criar artefatos. As ferramentas de pedra mais antigas encontradas datam de até 2,6 milhões de anos, produzidas por parentes ou antepassados extintos nossos, como os Homo habilis, erectus e floresiensis. A cultura é parte da nossa natureza tanto quanto a natureza deve fazer parte de nossa cultura.

Visão romântica
Sendo culturais por natureza, nossa relação com a dita-cuja sempre foi problemática, e não passa de visão romântica acreditar que há povos que vivem, ou viveram, em “harmonia” com o ambiente. Há povos menos ou mais exploradores de recursos naturais, mas, quando se trata de seres humanos, “equilíbrio” é ficção.

A nossa mata atlântica já era desmatada milhares de anos antes que os tupis aparecessem por aqui e continuassem, eles próprios, o serviço. É que a intensidade com que europeus destruíram a floresta, dá aos antecessores um ar de inocência que, na verdade, não havia. O fato é que, à medida que tornamos mais sofisticadas nossas ferramentas, alteramos o equilíbrio de forças entre nós e os demais ocupantes do planeta. Capacidade crescente de cultivo, armazenamento e melhoramento genético de plantas e animais (que fazemos há milhares de anos, muito antes dos transgênicos) permitiram que as populações humanas se multiplicassem de forma explosiva e potencialmente suicida.

Mas nem tudo está perdido: afinal de contas, na nossa natureza temos a cultura, e um dos aspectos positivos dela é nos permitir, hoje, saber melhor quem somos, o que temos feito e o que precisamos fazer se quisermos sobreviver. É por isso que, apesar das evidências contrárias, nós temos hoje a melhor chance de alcançar um convívio mais equilibrado entre o planeta e os homens.

PS: Caso você queira se informar mais sobre o assunto, um bom começo é o livro O terceiro chimpanzé, de Jared Diamond (editora Record, 2010).

*André Caramuru Aubert, 50, é historiador e trabalha com tecnologia. Seu e-mail é acaramuru@trip.com.br

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