Foi na prisão que Luiz Mendes começou a ter prazer ouvindo música, e se virou fã de blues
Durante muitos anos, décadas, sonhei, na minha solidão prisional, em ter casa, filmes, livros, computador, televisão, internet e música, muita música principalmente. Não seria só para mim, mas também pelo prazer de poder receber com elegância. Mas, ao sair da prisão, foi difícil até andar (tomei muita trombada até aprender), quanto mais ter isso tudo. Mas acreditei e empreendi nesse sentido.
Estou conquistando. Não como queria (já, agora), mas aos poucos, como dá. Construí a casa no ano passado, após cinco anos de muito esforço, autocontrole e economia. Possuo atualmente cerca de 900 filmes, entre piratas e originais. Tenho aqui para ler, li ou tenho lido os livros que quis desesperadamente ler e dos quais fui privado por estar preso. Meu laptop é top de linha; a televisão é de plasma. Tenho TV a cabo e internet banda larga. Mas meu maior apreço é pelos meus CDs de música e DVDs de shows musicais.
Comecei a construir prazer musical na prisão. Até então não passava de um idiota estupidificado pela ignorância e pela dor. Levava meus sentimentos embaixo da sola do sapato. Pisava, esmagava para não doer mais ainda. Ainda bem que precisamos sempre de novos começos. Caso contrário, acho que acabaríamos antes dos 10 anos de idade. E eu comecei escutando Jô Soares Jam Session na rádio Eldorado todos os dias às 18 horas. Aos primeiros acordes de Buddy Guy, eu já identifiquei o blues como o lugar onde eu deveria estar com minha vida toda. A angústia, a ansiedade e as paixões imensas que se debatiam dentro de mim encontraram no blues sua expressão mais legítima. Dali para frente ficou mais fácil transformar tudo em música, poesia, e sobreviver.
De seis anos a esta parte, venho acumulando conhecimentos e materiais dessa cultura. Estudo em revistas especializadas, livros e filmes. Compro em sebos, piratas (crime maior é o original ser tão absurdamente caro), baixo na internet, como for e meu dinheiro der. Tenho já coleção considerável dos clássicos e até dos mais novos. A internet facilitou bastante.
Chorar de prazer
Gosto particularmente de Billie Holiday. Há três músicas dela – “Strange Fruit, “Lover Man” e “Summertime” – que não canso de escutar. A mulher interpreta com tamanha sensibilidade que faz doer na gente. Depois dela vem Buddy Guy. Tenho um show em que ele toca “Red House” e “Voodoo Child”, do Jimi Hendrix. Dá vontade de chorar de prazer. Ele esmerilha, acaba, parece incorporar o grande Hendrix.
Gosto muito de Muddy Waters e de John Lee Hooker. Ainda tem Clarence “Gatemouth” Brown e Dr. John, que tocam maravilhosamente. Tenho aqui em casa, graças à internet, dois CDs com 40 músicas de Robert Johnson, o mito do blues. Aos poucos vou me tornando um conhecedor de blues e gosto muito disso. Acho até que já faço uma leitura bastante satisfatória.
Claro, gosto de outros estilos musicais: o rock progressivo do Pink Floyd e do Genesis (com Peter Gabriel nos vocais); o rock pesado do Deep Purple. Mas ainda prefiro os novos músicos de blues, como Robert Cray, Rory Gallagher e, principalmente, Stevie Ray Vaughan. Suas músicas são emocionantes e muito criativas.
Não sei, mas parece que a esperança de paz anda amortecida. Com o que já fui feliz, hoje sentiria dificuldades. Quase nada satisfaz de verdade. Tudo parece com data de validade vencida. O que há de melhor na vida é que tudo aquilo que pode ser refutado, evoluído ou superado acontecerá inevitavelmente. E isso nos conduzirá ao que virá, sem nos empacar por muito tempo. O blues provavelmente é um estágio, mas tomara eu consiga reter dele a possibilidade de rir, chorar e me sensibilizar, sem parecer bobo ou afrescalhado.
*Luiz Alberto Mendes, 56, é autor de Memórias de um sobrevivente, sobre os 31 anos e 10 meses que passou na prisão. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com