Só a identidade salva

Mendes: ”O anonimato só é honroso quando esconde nobrezas de caráter e atitudes”

Hoje sou identificado e apresentado como escritor. Não estou mais anônimo. Embora continue ex-presidiário para muitos, mesmo depois de oito anos aqui fora

Anonimato tem esse tom de oculto. Alguém que tenha seu nome ou sua pessoa escondido por algum motivo obscuro ou inconfessável. Identidade é o contrário. Um conjunto de caracteres próprios, como nome, sexo, idade, profissão, tatuagens, cultura, defeitos físicos e até as impressões digitais. É o conjunto de características pelo qual nos fazemos reconhecer, segundo o dicionário.

Um aglomerado de pessoas confere anonimato aos seus integrantes. Multidão não tem cara. A periferia confere anonimato ao homem empobrecido que nela reside. Assim como a riqueza confere destaque ao homem enriquecido (vide Eike Batista). O preconceito confere anonimato ao homossexual, ao feio, ao gordo, ao egresso das prisões e aos demais grupos de discriminados. A identidade confere humanidade a todas as pessoas. Matrícula na prisão confere anonimato ao presidiário. Somente a identidade confere individualidade às pessoas. Será ela quem dará voz, nome e resgatará o indivíduo do anonimato a que foi relegado.

O homem africano, capturado e vendido para trabalhar na lavoura de sol a sol, era apenas escravo anônimo. Depois de certo tempo, alguns assumiam posições de identidade. Uns tornavam-se ferreiros, outros mestres do ponto no açúcar, mucamas, e havia até a figura controversa do escravo ou ex-escravo feitor. Saíam do anonimato, adquiriam identidades e passavam a ser considerados indivíduos. Somente alguns indivíduos foram bem-sucedidos no esforço pela carta de alforria ou na luta armada dos quilombos.

Um sobrevivente

Para o homem da periferia perdido na multidão; para as excluídas vítimas de preconceitos; e para o presidiário abandonado nas prisões, resta seguir o caminho do escravo. A busca por se tornar pessoa. Procurar conhecimentos tem sido meu caminho. 

O livro é a ferramenta que escolhi para construir minha identidade. Moro na periferia, e não porque gosto; porque preciso. Também gosto de conforto e de ter acesso ao que existe de bom. Ainda sou alvo de preconceito por haver estado preso. Provavelmente, quando eu morrer, a notícia iniciará assim: “Morre o ex-presidiário Luiz Alberto Mendes, que também era escritor...”.

Primeiro fui considerado maluco pelos companheiros de prisão porque só falava de livros e conhecimentos. Depois passei a ser chamado de professor porque alfabetizava e dava aulas na prisão. Lancei o livro Memórias de um sobrevivente e para esse meu povo virei escritor, quase herói.

Aqui fora era para que eu fosse apenas um velho bandido detonado pela prisão e sem futuro. Mas, por conta de meus livros, fui entrevistado na TV, no rádio, em revistas e em jornais. Lancei novos livros, tenho viajado para as capitais do país convidado para fazer palestras, oficinas de leitura e escrita, textos em jornais, revistas, cinema, teatro... Hoje sou identificado e apresentado como escritor. Não estou mais anônimo. Embora continue ex-presidiário para muitos, mesmo depois de oito anos aqui fora.

O anonimato só é honroso quando esconde nobrezas de caráter e atitudes. Então ganha o nome de uma das mais raras virtudes: a modéstia. A mídia, para nos impingir seus produtos, tem direcionado nossa necessidade de identidade para a busca de destaque. Destaque se compra nos shopping centers, a moda dita o prazo de validade e o preço é muito caro. Identidade já é segurança e afirmação pessoal, dura para o resto da vida e não tem preço.

*Luiz Alberto Mendes, 58, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com

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