Skate a 24 quadros

por Caio Ferretti
Trip #195

O documentário Vida sobre rodas conta como era o cenário do skate no Brasil

O documentário Vida sobre rodas, em cartaz nos cinemas, conta como era o cenário do skate no Brasil onde surgiram Bob Burnquist, Sandro Dias, Lincoln Ueda e Cristiano Mateus – nomes que influenciaram a forma como se anda de skate hoje. Trip conversou com os quatro para resgatar os primórdios do esporte no Brasil.

O skate estava encaixado na borda do half pipe de madeira. A mais de 3 m de altura, Bob Burnquist testaria de verdade, pela primeira vez, o presente dos pais no aniversário de 11 anos. Até então, ele só havia feito algumas manobras na sala da própria casa. Mas agora a experiência seria outra. Uma tal de Ultra Skate Park havia sido aberta a três quadras de sua casa – e lá estava ele. Bob fez o sinal da cruz, embicou seu skate rampa abaixo e desceu. Foi direto de cara no chão. Esperou alguns segundos, levantou, subiu de novo e, enquanto todo mundo olhava assustado, ele não titubeou e se jogou mais uma vez... de cara no chão. Naquele dia, no fim de 1987, Bob saiu da pista sem fazer o que queria. Mas decidiu que voltaria ali até conseguir descer aquele half. Como se sabe, ele não desistiu – e mudou os rumos do skate nos anos seguintes.

A história está no documentário Vida sobre rodas, primeiro longa-metragem brasileiro de skate, que está em cartaz nos cinemas. “O filme mostra como era o cenário em que surgiram Bob Burnquist, Sandro Dias, Lincoln Ueda e Cristiano Mateus”, diz o diretor Daniel Baccaro. “E conta a trajetória desses quatro desde a década de 80 até hoje.” Uma trajetória que agora enche estantes de troféus e que influenciou diretamente a forma como se anda de skate atualmente. Mas, no início, era difícil imaginar que se concretizaria. “O possível hoje era o impossível quando eu comecei”, compara Bob. Verdade, mas muita coisa já havia sido feita em prol do skate antes que ele tentasse aquele primeiro drop no half da Ultra. E é justamente esse período que o documentário destrincha – a começar pelas principais rampas, bowls e verticais que viviam cheios no início da década de 80.

"Bob fez o sinal da cruz, embicou seu skate rampa abaixo e desceu. Foi de cara no chão. Enquanto todo mundo olhava assustado ele se jogava mais uma vez... de cara no chão..."

Algumas pistas já faziam sucesso no cenário brasileiro bem antes de o pai de Cristiano Mateus construir a Ultra Skate Park para seu filho, em um galpão da zona sul de São Paulo. Os campeonatos aconteciam em um bowl de concreto em Guaratinguetá, no interior do Estado. A fama do lugar cresceu com as competições e a pista chegou a receber visitas de grandes nomes como Tony Hawk e Christian Hosoi. “Aquele lugar era o paraíso”, diz Hosoi em depoimento ao filme. Ao mesmo tempo, o documentário mostra que outra pista também se popularizava no início da década de 80, a de São Bernardo do Campo. Um lugar de localismo pesado que Hosoi também visitou – e ficou sem o skate que trouxe dos Estados Unidos. Foi ali que surgiu o hoje pentacampeão mundial de vertical Sandro Dias, dono de uma linha de manobras que encanta juízes e inspira novos praticantes do esporte sobre rodinhas. Na capital, a lista de pistas da época ainda era engordada pelas clássicas Wave Park, QG e Prodige, citadas no filme com menos destaque.

Volta, Tony Hawk!
Quem não tinha pista para andar dominava tudo o que fosse skatável no parque do Ibirapuera. Eram os Ibira Boys – um grupo que perdeu terreno quando o então prefeito de São Paulo, Jânio Quadros, decidiu proibir o skate no parque. Diante dos protestos, Jânio foi além. Criou uma lei em 1988 para tornar o esporte ilegal em toda a cidade. Foram Fuscas e Fuscas da polícia militar cheios de skates confiscados. A lei deixou de existir quando Erundina assumiu a prefeitura em 1989, mas voltou a ser cogitada este ano na Câmara dos Vereadores. E o que acontece se for sancionada? Bob dá a dica. “Seria engraçado, porque o cara que proibisse não ia durar muito. Hoje existem muitos nomes grandes no skate, o protesto seria muito maior, com um argumento muito mais evoluído.”

Mas o ano de 1988 não ficou marcado só pelo devaneio autoritário de Jânio. Na verdade, o que ficou mesmo na memória dos moleques Bob, Cris, Ueda e Sandro foi o Overall Skate Show. “Eu me lembro de ver um outdoor falando do evento. Falei pro meu pai: ‘Você vai ter que me levar!’”, recorda Bob. No outdoor estava a promessa: um evento de skate traria ao Brasil Tony Hawk e Lance Mountain, principais nomes do vertical na época. E ainda colocaria os melhores skatistas do país frente a frente em um campeonato.

No primeiro dia, frustração. Antes do evento, Hawk resolveu fazer uma boquinha nos restaurantes do centro de São Paulo e ficou completamente avariado. Mas, no dia seguinte, eleimpressionou a todos. Bob não pôde ir, mas Cris Mateus sim. “Eu estava começando a andar de skate, fui pra ficar na plateia. Lembro que tinha um monte de gente vendendo vídeos de skate do lado de fora. E, quando vi o Tony Hawk andando, pensei: ‘Noooossaaaa!’. Ele fazia coisas que a gente nunca tinha visto por aqui.” As fitas resgatadas pelo diretor Daniel Baccaro para o filme não deixam dúvidas. O skatista norte-americano aparece nas imagens em manobras que muitos brasileiros nem sequer imaginavam existir.

Até hoje, por causa do mal estar, Hawk considera a viagem ao Brasil a pior que fez em toda sua vida. “Ele nunca mais voltou pra cá. Outro dia conversei com ele sobre o assunto.Eu disse que as coisas mudaram. Mas ele brinca que a primeira impressão é a que fica”, lembra Lincoln Ueda, um dos skatistas que também andaram na pista do Overall Skate Show.

A imagem do skate brasileiro não era mesmo das melhores naquele fim da década de 80. A malandragem tupiniquim extrapolou os limites quando a indústria nacional começou a plagiar famosas marcas de skate para vender por aqui. Não caiu nada bem entre os skatistas gringos ver os brasileiros nos campeonatos com roupas e peças de skate plagiadas. “Teve um boicote a nós, um desrespeito bem grande”, conta Ueda. O que, por exemplo? “No campeonato mundial na Alemanha, em 1989, os brasileiros foram colocados pra treinar na última bateria do dia, quase de madrugada. E eles ainda apagavam as luzes no meio dos treinos.” A resposta veio sobre rodinhas. Aos 15 anos, meio que de penetra na festa alheia, Ueda conseguiu um inesperado quarto lugar na Alemanha – e os gringos tiveram que tirar o chapéu.

Aterrissa, japonês!
Tudo parecia caminhar bem quando veio o baque. “Acabou a indústria do skate. As marcas faliram, as revistas sumiram do mercado, as pistas fecharam”, lembra Ueda. Resquícios do Plano Collor. A Ultra Skate Park, onde Bob e Cris aprenderam a andar de skate anos antes, fechou. O galpão teve que ser alugado para trazer dinheiro ao dono. E Ueda, já chamado de “Japonês Voador” pelos enormes aéreos, teve de aterrissar. “Meu pai virou pra mim e disse: ‘É o seguinte, skate não dá mais’. E eu fui trabalhar na oficina mecânica dele.” E lá ficou por cerca de seis anos, quase totalmente afastado do skate. Até sentir que dava pra deixar a graxa dos motores e voltar para a graxa dos rolamentos das rodinhas.

"Os campeonatos aconteciam em um bowl de concreto em Guaratinguetá, no interior de São Paulo. A pista recebeu grandes nomes como Tony Hawk e Christian Hosoi. 'Aquele lugar era o paraíso', diz Hosoi"

O skate perdeu o fôlego, mas seguiu respirando durante esse período. O suficiente para conseguir se reerguer com estilo nas pernas de Bob, Cris, Ueda e Sandro. O filme traz imagens do primeiro troféu de campeão que Bob levantou fora do país, no Slam City Jam, no Canadá. E imagens da linha completa de manobras de Sandro Dias em seu primeiro título mundial no vertical, em 2003. O que veio na sequência foi uma lista enorme de títulos internacionais conquistados pelos quatro. E, por que não dizer, a supremacia brasileira no cenário mundial – com um estilo de andar de skate novo e inconfundível, digno de um reconhecimento de honra. “Tem alguma coisa específica que identifica a maneira de andar de skate no Brasil”, diz, no filme, Tony Hawk – hoje fã assumido do quarteto que sempre o admirou.

E, se antes eles dependiam de escassos vídeos para ver as novas manobras que surgiam no exterior, hoje eles é que criam as novidades. Como Bob fez com a megarrampa. Mas, depois de tanta evolução, é possível progredir mais? Bob responde: “É impossível parar a evolução do ser humano, então é impossível parar a evolução do skate. Não vai ser drástica como foi de 20 anos pra cá. Mas o skate é arte, é um estilo de vida. E eu já tenho várias ideias novas. Páginas e páginas de ideias”.

"'Tem alguma coisa específica que identifica a maneira de andar de skate no Brasil', diz, no filme, Tony Hawk – hoje fã assumido do quarteto que sempre o admirou"

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