Por Redação
em 21 de setembro de 2005
– Mataram meu marido!
Estava tranquilamente sentado num dos anatômicos assentos de um vagão do metrô paulista. Dirigia-me para o terminal Santana. Ao meu lado, um senhor de rosto vermelho, cabelos bem branquinhos e óculos escuros. Em pé alguns jovens com cara de estudantes, bastante alegres e barulhentos, como só acontece com a vida. De repente, uma moça de cabelo amarrado, rosto duro e seco de nordestina, sentada no banco da frente, vira-se para nós, fita-me no fundo dos olhos e novamente ataca:
– Mataram meu marido!
Seu rosto estava pálido, sem cor. Exprimia uma aflição tão descomunal, que fiquei ali chocado, pasmo. Sem ação ou palavras. Parecia dirigir-se a mim, no meio de tanta gente. E, puxa, eu jamais a vira em toda minha vida. Seus olhos estavam congestionados. Olhavam-me sei lá se duros ou súplices; era indecifrável. O povo do vagão silenciou. Olhava-me tão fortemente que parecia que minha cara ia se partir em pedacinhos e os cacos se esparramar pelo solo.
Havia uma tal intensidade de dor na expressão de sua voz, que temi fosse acontecer qualquer coisa extraordinária ali. Assim como um raio atravessando o vagão ou alguém aparecer despejando tiros para todo lado. Parecia até possível que uma granada explodisse ali na minha cara.
O silêncio constrangeu a todos. Só o som das rodas de aço batendo nos trilhos, como a machucar folhas secas, se podia ouvir. Todos estavam em suspenso. Como se o tempo houvesse parado. Porque aquela mulher dizia aquilo? Era óbvio. Haviam matado seu marido. Mas porque ali, e porque me olhava tão fixamente? Que tinha eu com aquilo? E, meu Deus, o que responder; com que palavras? Bombardeei a mente de questões. E lá vinha ela novamente, virando-se para nós:
– Mataram meu marido!!! Vocês sabiam? Mataram meu marido!
– Sinto muito, minha senhora, o que posso fazer?
Respondi, desconsertadamente. Senti que devia dizer algo, pôr mais idiota fosse. A coisa era tão estranha e inusitada que exigia alguma expressão. Mas o resultado deixou-me mais confuso ainda. A mulher arregalou os olhos, estremeceu-se toda aos olhos atônitos de todos nós ali naquele vagão. Virou-se para frente, colocou as mãos nos olhos e danou a chorar. Soluçava alto, dominando todas atenções.
O trem prosseguia a viagem. As pessoas adjacentes olhavam-se incomodadas. Todos pareciam querer maior distância possível daquele presumível drama. O modo como as pessoas demonstravam aquela indiferença que, verdadeiramente, não sentiam, fez com que me sentisse confusamente envergonhado. Era como houvesse feito algo reprovável ao responder àquela moça. Como se, a partir de então, fizesse parte da tragédia. Ou mesmo fosse um dos protagonistas, no mínimo, responsável pelo desencadeamento do descontrole emocional da moça.
Com seus jogos de olhares cúmplices, as pessoas do vagão como que nos isolavam. Mas não havia do que me envergonhar. Nada fizera de errado. Oras, pensei: que se danem! Logo chegaríamos em Santana e não veria mais aquelas caras censoras.
Como começou, repentinamente, como por encanto, a moça parou de chorar e começou a fazer o maior barulho. Chupava o nariz, pouco ligando para a educação ou se incomodava alguém.
Fiquei super intrigado. O que era aquilo? Parecia mais um quadro surrealista do que a vida em si. Não sabia o que pensar. Seria louca a mulher? E será que era tão importante aquela gente aparentar tamanha indiferença? Cogitava tais questões quando chegamos à Estação Tietê. A moça apressou-se em deixar o vagão, ganhando rapidamente a plataforma de desembarque.
Não consegui me segurar no banco, por mais compromissos que tivesse. Penso que da realidade só temos a vida e da vida só temos a nós mesmos. Assim mesmo, só temos o que acumulamos a cada momento e somos unicamente o que existimos. Precisava saber o que significava aquele instante, o que havia protagonizado. Levantei e desci também do vagão. Apressei meus passos. Metros à frente, abordei-a.
– Escuta moça, escuta: o que foi aquilo, o que aconteceu?
Olhou-me assustada. Ao me reconhecer, como eu fosse uma lembrança remota, quedou-se. Respirou fundo e respondeu, olhando com aquela profundidade mal alimentada de sonhos:
– O que você quer?
– Vamos sentar um pouco aqui. Converse comigo. O que houve, teu marido morreu mesmo ou você está com algum problema? Explica-me, por favor. Fiquei de bobeira, sem entender. Ela era bem mais jovem do que observei a princípio. Mais bonita também. Seus olhos pareciam carregar por dentro toda a dor do mundo. O que a envelhecia, comprimindo-a de maturidade precoce. Após sentar-se a meu lado no banco da estação, olhou-me avaliando e disse:
– Puxa, moço, você não sabe o que eu estava sentindo ali, naquele momento. Precisava dizer a alguém. Aquilo estava me corroendo por dentro. Foi quase um grito de socorro. Eu estava muito só e a dor, às vezes, é muito maior que eu, chega a me sufocar. Quando você disse que sentia muito, percebi o quanto estava desesperada. Senti dó de mim mesma, só então pude chorar. Precisava muito chorar. Estou aliviada agora, já dá para voltar para casa.
– Mas o que aconteceu, por que tamanha dor? O que houve com o teu marido? Perguntei ainda insatisfeito. Eu apenas começava a me conhecer. Via-me no intervalo do que lutava para ser e o que era de verdade. Provavelmente, parte disso apenas. E aquilo mexia comigo demais. Fazia parte do meu roteiro, qual papel estava protagonizando ali?
– Não quero falar nisso. Lembrar só machuca mais. Estava só, em casa, sofrendo demais, então resolvi sair. Precisava falar com alguém. Estou entrando e saindo de vagões do metrô há umas cinco horas. Não consegui falar com ninguém, até que não agüentei mais. Disse para a primeira pessoa que vi. Foi você, e acertei, porque você sentiu muito. Já estou bem. Muito obrigada. Com licença, preciso buscar meu filho que está com minha sogra.
Perplexo, fiquei observando a moça despedir-se numa tentativa bizarra de sorrir e seguir pelo chão emborrachado da estação. Confuso, acompanhei com os olhos, até que se perdesse na multidão. Só então compreendi: como ela estava só! Que solidões mais profundas, impenetráveis!
Refleti que a solidão é o maior medo de cada um de nós, e aquela mulher mergulhara fundo nesse medo. Bem, pelo menos tentei contribuir. Senti muito mesmo, e ainda sentia. Esse pensamento fez com que me sentisse humano de repente, respeitando a mim mesmo. Sorri e caminhei para o trem que acabara de chegar na estação.
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