por Ana Maria Peres
Trip #215

Os medalhistas paraolímpicos do Brasil contam como é viver com dedicação ao esporte

Com a inédita sétima colocação nas Paraolimpíadas de Londres, os atletas brasileiros mostraram mais do que competitividade e superação: ficou clara sua profissionalização. Os medalhistas Odair Santos, Daniele Bernardes e Daniel Dias contam como é viver com 100% de dedicação ao esporte

O maior medalhista brasileiro na história dos Jogos Paraolímpicos já é conhecido geral. O assédio em torno dele cresceu proporcionalmente ao fenômeno que alcançou nas piscinas londrinas: em todas as provas individuais de que participou, chegou em primeiro lugar. Seis ouros em seis competições. Com apenas duas Paraolimpíadas no currículo, ele coleciona hoje 15 medalhas na natação, sem contar a grande leva de ouro e de prata acumulada anteriormente em disputas internacionais. E ainda acaba de estabelecer quatro novos recordes mundiais e um paraolímpico. “Daniel Dias não é apenas o maior atleta paraolímpico da história do esporte nacional, mas um dos maiores atletas brasileiros de todos os tempos”, afirma o medalhista olímpico Flávio Canto.

O que poucos conhecem é a saga a que o atleta de 24 anos foi submetido antes de embarcar para a Inglaterra, durante o intenso período de treinamento dos jogos oficiais. Em junho, enquanto se preparava para viajar rumo ao Centro de Alto Rendimento de Sierra Nevada, na Espanha, onde costuma treinar aclimatação a 2.320 metros de altitude, sua avó faleceu. No mesmo período, seu treinador, Marcos Rojo, o Marcão, 51, passou por uma cirurgia cardíaca que incluiu duas pontes de safena e uma mamária, além de um mês de repouso. Como se não bastasse, 15 dias antes de ir para Londres, a mãe de Daniel teve de fazer uma operação de hérnia umbilical.

Se treinar sozinho a três meses da maior competição paraolímpica do mundo já é suficientemente tenso, imagine com a família baqueada. No entanto, segundo os mais chegados, Daniel tem foco de sobra. E um pouco mais do que isso. “Ele tem uma força espiritual grande”, afirma Marcão. Enquanto o técnico se recuperava em casa, recebia visitas constantes de Daniel junto com outros atletas. “No fim, ele sempre puxava uma oração”, conta o treinador, praticante de mountain bike e ex-triatleta, ainda surpreendido com o fato. “Eles me passaram muita força e coloquei os pés no chão. Esse lado do Daniel me ajudou. Em menos de um mês, subi no avião para Sierra Nevada.” Pouco depois, Daniel se consagrava como o segundo maior campeão das Paraolimpíadas de Londres, atrás apenas da nadadora australiana Jacqueline Freney, com oito ouros.

“Tudo é consequência do treino antes da competição, se você gosta do que faz as coisas fluem; a natação é meu trabalho. Às vezes, pode parecer que não vai dar certo, mas se você persistir dá para virar um campeão”, avalia o atleta de Camanducaia MG, que nasceu com má-formação congênita nos dois membros superiores e na perna direita e, por isso, compete na classe S5, para nadadores com limitações físico-motoras. “A espiritualidade sempre fez parte da minha vida. Sou evangélico desde a infância e minha família foi fundamental para eu me aceitar como sou”, explica.

 

“O esporte paraolímpico saiu do subterrâneo do olímpico para um patamar de superação, admiração e respeito”, comenta o medalhista olímpico e velejador Lars Grael

 

Há quatro anos, desde a Paraolimpíada de Pequim, onde conquistou quatro medalhas de ouro, quatro de prata e uma de bronze, ele treina de seis a sete horas por dia, de segunda a sábado, intercalando natação, musculação e pilates. Sua equipe conta com nutricionista, fisioterapeuta, cardiologista e dois preparadores físicos, além do treinador. Recebe patrocínio da Embratel e do Mackenzie, além do Bolsa Atleta e do projeto Time São Paulo Paraolímpico, que fornece cerca de R$ 100 mil por ano para cada atleta selecionado, verba pública que pode ser gasta em intercâmbios e treinamento.

Assim como Daniel, diversos atletas paraolímpicos fazem parte de programas coordenados pelo Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) e conseguiram viver do esporte graças também aos patrocínios. “Depois de Pequim, avaliamos o cenário das modalidades e o percentual de crescimento de cada uma ao longo das últimas décadas. Com isso conseguimos liberação de investimento do governo federal”, explica Edilson Tubiba, diretor técnico do CPB. Além de ter alcançado seu melhor desempenho em Paraolimpíadas na edição de Londres, o Brasil atingiu a meta de ser o sétimo colocado no quadro geral. Com 21 medalhas de ouro, 14 de prata e oito de bronze (43 no total), ficou à frente de países como Alemanha, Holanda e Canadá. “O esporte paraolímpico saiu do subterrâneo do olímpico para um patamar de superação, admiração e respeito”, comenta o medalhista olímpico e velejador Lars Grael, que perdeu parte de uma das pernas num acidente em 1998 e chegou a ocupar o cargo de secretário nacional de Esportes na época. “A boa preparação do Comitê Paraolímpico Brasileiro é a principal razão desse avanço. O Brasil já chegou à liderança pan-americana e caminha para se colocar entre as cinco potências paraolímpicas no Rio em 2016.”

Corrida contra o tempo
Contudo, enquanto a injeção de recursos ainda não chega à formação de base, muitos contam com a família – e com a sorte – para conquistar mais do que troféus. O fundista Odair Santos, 31, prata nos Jogos Paraolímpicos de Londres, começou no atletismo ainda moleque, aos 10 anos, por influência de um tio que participava de corridas de rua. Nascido em Oswaldo Cruz, interior paulista, filho de uma doméstica e de um ajudante geral, foi só na terceira série que notou algo estranho em sua visão. “De repente, passei a levantar e ir até a lousa para entender o que estava escrito”, lembra. A professora chamou sua mãe: “Odair tá diferente, precisa de oculista”, disse ela. Mas foi o oftalmologista que cravou o diagnóstico: retinose pigmentar, doença genética que destrói as células da retina. Quando passou a usar cadernos especiais para letras grandes e precisou de reforço escolar, vieram os olés das meninas. Mesmo assim, correu dos 10 aos 17 anos e fez uma coleção de medalhas e troféus em campeonatos regionais. Só parou porque precisava de dinheiro para ajudar os pais e foi trabalhar numa fábrica de embalagens para pizza em Limeira, onde vive até hoje.

Dali, Odair passou a vender marmitas preparadas pela família. “Eu fazia as entregas de moto, olha que loucura”, relata, rindo. Com o tempo, passou a enxergar somente vultos. “Hoje defino uma pessoa pela voz dela”, diz.

Um dia, uma amiga deu a letra: “Odair, vá aprender braile”. Na instituição de ensino, ele conheceu o atual técnico, Fábio Breda, e voltou às pistas aos 22 anos, movido também pela antiga curiosidade de andar de avião. “Se você alcançar o índice a gente vai para os mundiais”, avisou Breda. Em 2003, nos Jogos Parapan-Americanos de Mar del Plata, ele ganhou três ouros. Com a colocação, passou a receber R$ 700 do Bolsa Atleta. No ano seguinte, em Atenas, foi prata nos 1.500 e 5 mil metros e bronze nos 800 metros, na classe T12, para atletas de baixa visão. Em 2005, veio o patrocínio da Caixa. Virou recordista mundial, ganhou três bronzes em Pequim, patrocínio da Nike e entrou para o Time São Paulo. Em 2010, Odair mudou de classe e passou a competir na T11 (perda total de visão). “Foi bem dolorido, encarar a reclassificação é difícil até hoje. Tenho um guia 24 horas.”

 

“Antigamente as pessoas viam o esporte paraolímpico como inclusão social. Não percebiam que a gente treinava todo dia para chegar lá”, afirma a judoca Daniele Bernardes

 

Em setembro do ano passado, Odair casou. Foi com a foto da filha, Julia, 4 meses, colada aos óculos que ele disputou a final nos 1.500 metros, em Londres, e trouxe a prata. Integrante também do Projeto Ouro, possui uma equipe formada por fisioterapeuta, psicóloga, fisiologista e dois atletas guias, além do treinador. Duas vezes por semana, pratica musculação. À noite, após o treino diário, estuda educação física em Limeira. “Gravo as aulas e depois transfiro o áudio para o computador.”

“Antigamente as pessoas viam o esporte paraolímpico como inclusão social. Não percebiam que a gente treinava todo dia para chegar lá”, afirma a judoca Daniele Bernardes, 28, que, como Odair, possui deficiência visual. Devido a um contragolpe perfeito, que circulou em todas as redes sociais, contra a rival venezuelana Naomi Soazo, a paulista de São Bernardo do Campo acaba de voltar de Londres com uma medalha de bronze, repetindo o feito de Atenas e Pequim. Competindo na categoria meio-médio (até 63 quilos), ela também ganhou prata nos Jogos Parapan-Americanos de Guadalajara e ouro no último Mundial da IBSA, na Turquia.

“A Daniele é uma das atletas mais experientes da equipe brasileira. Ganhou sua primeira medalha em Atenas, era evidente que ela era especial”, afirma o judoca Flávio Canto. “O movimento paraolímpico já passou há pelo menos duas décadas da fase de um evento de promoção de reintegração social dos participantes. Hoje é uma competição de altíssimo nível técnico”, garante.

Daniele possui visão monocular, enxerga apenas com um olho. Não se sabe se é de nascença, mas o problema foi descoberto quando tinha 2 anos. Aos 10, os médicos perceberam que seu nervo ótico havia atrofiado. Filha de um professor de judô, ela conta que aprendeu a lutar aos 3 anos. “Meu pai tinha uma academia na nossa garagem e um local de treino de judô no porão.” A academia mudou de endereço e, hoje, Daniele utiliza o espaço apenas como complemento aos treinos. Boa parte deles ocorre em São Paulo, junto a atletas convencionais. Ao todo, são quatro horas diárias de preparação, bancadas pelo Bolsa Atleta e pelo Time São Paulo. Formada em pedagogia, planeja montar um projeto ligado ao judô, futuramente. Com a repercussão da última Paraolimpíada, ainda estranha quando é reconhecida na rua. “Essa competição foi a de maior impacto na minha vida. Muita gente chega me parabenizando. Agora as pessoas estão nos tratando como atletas.”

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