por Nathalia Zaccaro

Poeta, músico, articulador cultural e político das tradições pernambucanas. Siba é um dos nomes centrais da música brasileira contemporânea

"Agora sinto que tenho um som bem resolvido que posso abandonar se eu quiser", diz Siba, sobre Coruja muda, disco que lançou no início de setembro. O álbum é o terceiro da trajetória solo do pernambucano. "Quando fui para estrada com Avante (2012), meu primeiro trabalho individual [depois dos discos com a Fuloresta e Mestre Ambrósio], vi que tinha um problema sério de rítmica ali. Entendi que não ia ser pelo rock que eu ia avançar. Depois, com De baile solto (2015), a música foi ficando mais maleável, fui trazendo cada vez mais elementos da minha história, não só da coisa popular, mas das minhas outras referências musicais. Mas ainda acho que é um disco mal resolvido. Foi o começo de uma experiência que só agora se resolve", explica. 

Executados com bateria, guitarra, synth e participações de músicos como Edgar, Arto Lindsay e Chico César, o coco, a embolada, o maracatu de Coruja muda revelam o contexto cheio de camadas culturais que construiu o estilo musical único de Siba. "O maracatu me formou. Eu faço parte dessa tradição e, ao mesmo tempo, estou longe dela. Mas a carrego comigo. Tudo o que eu sou eu devo ao maracatu, foi minha experiência formadora, não só como poeta, mas como como cidadão, como pessoa social", diz.

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A intimidade com as tradições populares pernambucanas é fruto da busca de Siba por sua identidade enquanto artista. Ele nasceu e cresceu na capital Recife, ouvindo Led Zeppelin e pegando onda. Filho de um advogado e de uma professora, rompeu com as expectativas da família quando decidiu investir na música como ganha pão. "Vendi a prancha de surf, comprei uma guitarra e fui tentar me entender. Eu tinha a intuição de que deveria me voltar para a cultura particular do lugar de onde eu venho, que é forte, rica, e que falava comigo antes de tudo. Logo me conectei com o maracatu do baque solto,  que é o que define todo o meu caminho ", resume.

Mestre Ambrósio

Foi por meio do contato com a cultura da Zona da Mata pernambucana, região marcada pela herança dos engenhos de cana de açúcar e da escravidão - e que é o epicentro da fervilhante  cultura do maracatu - ,que nasceu, em 1992, a banda Mestre Ambrósio, em que Siba trocou a guitarra pela rabeca, e se descobriu cantor e compositor. O grupo se firmou como um dos principais acontecimentos musicais dos anos 90 e fez parte da cena de música independente pernambucana que se destacou no Brasil naqueles anos, impulsionados pelo imenso destaque de Chico Science e a Nação Zumbi e do movimento manguebeat.

"Chico Science teve a sacada de dizer, 'olha, eu venho de um lugar que tem um monte de gente'. E ele citava nomes, como o Mestre Ambrósio. Começou a sair matéria no jornal, a MTV vinha para Recife e aquilo criou uma consciência que antes não existia. O manguebeat tinha mais a ver com essa consciência coletiva do que com uma colaboração de fato entre as bandas. Não tinha uma liderança ou uma unidade estética, mas, sim, pequenas articulações que somadas conseguiram projetar a música da cidade", diz. 

Com Mestre Ambrósio, lançou três discos, fez diversas turnês internacionais e foi responsável por traduzir, mesmo que não intencionalmente, as tradições populares da Zona da Mata pernambucana para a cena da musical contemporânea da época. "A gente era um banda, não um balé folclórico ou um grupo de demonstração da cultura popular, mas tínhamos um amor por essa tradição. Acabamos trazendo isso e, muitas vezes, tendo que explicar o que era. Existe uma barreira muito mais profunda  aí, para além do um preconceito cultural. Existe uma barreira social que é muito mais difícil de transpor. Existiu o Mestre Ambrósio, o Cordel do Fogo Encantado, a Nação Zumbi, mas dá para contar nos dedos os artistas que de fato vem da cultura popular e que conseguiram se projetar individualmente. Existe um senso comum que diz cirandeiros vão ser sempre os cirandeiros, os maracatuzeiros, os poetas, os violeiros… Essas pessoas não têm nome", conta.

Em 1996, Siba trocou Recife por São Paulo. A banda estava crescendo, assinaram com gravadora grande e intensificaram os shows e turnês. "Aí começou a rolar um certo vazio com o processo do showbizz, viver em São Paulo, tocar no Sesc, viajar pelo Brasil, lidar com o mercado. Eu me via como um artista mal formado, nem era cantor, nem era compositor exatamente, nem era poeta.  Em 2002, tive uma intuição de acreditar em um caminho nada usual, que era voltar para Pernambuco, morar numa cidade de 30 mil habitantes e montar um grupo lá com as pessoas da tradição. E aí fui morar em Nazaré da Mata."

Fuloresta mestra 

Lá, Siba era visto como alguém diferente. E de fato era. Um cara de classe média, com um carreira na música já construída, que tentava encontrar ali um tanto de si mesmo.  “Era realmente um lugar que, a princípio, não me caberia, mas que me coube. Era um mundo da classe trabalhadora, do cortador de cana. Hoje a situação mudou um pouco, mas quando comecei a entrar no universo do maracatu as pessoas passavam fome, estou falando do Brasil pré-Lula. E o que aconteceu foi que sempre me abriram portas. É o inverso do que uma pessoa pobre encontra para ascender socialmente, quando as portas sempre se fecham. Lá, quando eu conseguia tocar um pouco, já podia pegar um instrumento, quando conseguia cantar, me deixavam cantar, é uma cultura que estava aberta para mim, fui dando passos adiante até me tornar mestre de maracatu e ocupar certas posições que, até então, nenhuma pessoa de fora tinha ocupado.”

A partir desse contato, formou a Fuloresta, grupo de músicos de percussão e sopro da tradição de Nazaré da Mata e com quem Siba gravou dois elogiados discos, um em 2002 e outro em 2007, e quando entendeu a importância do texto, da poesia, em sua identidade artística. Foi indicado ao Grammy, viajou para diversos países com a pequena orquestra rural e reencontrou o sucesso com a música “Toda vez que eu dou um passo o mundo e sai do lugar.” “Cantar com a  Fuloresta foi uma experiência que fez muito sentido, tive uma sensação de unidade que talvez eu nunca mais tenha na minha vida de novo”.

Mas a vida pessoal de Siba o atraiu de volta para a cidade grande. “Me separei, meu filho foi morar longe, eu voltei pra São Paulo. Foi um tempo muito complexo e não  fazia mais sentido pensar o som com a lógica de quem está na Zona da Mata, mas eu também não sabia o que fazer nessa nova posição, levei um tempo pra elaborar.” Ele pegou de volta a guitarra, há muito tempo abandonada, e, da nova fase, surgiu Avante (2012), seu primeiro disco solo, que Siba classifica como noiado. A produção do guitarrista Fernando Catatau trouxe o rock para os arranjos, que se afastaram do som dos trabalhos anteriores do pernambucano.

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Começou na turnê de Avante uma investigação sonora profunda em busca da rítmica que Siba assumiria para reelaborar seu som dali pra frente. Para De baile solto (2015), trouxe Mestre Nico, percussão e resgatou sua conexão com a cultura da Zona da Mata, sem deixar de explorar a guitarra e suas referências de música internacional. Mas, só agora, com Coruja muda, Siba sente que encontrou a fórmula. E não só do som.

Mais do que descobrir como absorver e reinventar as culturas tradicionais com sua banda, ele avança nas reflexões sobre seu papel como cidadão pertencente a essa tradição popular. Em 2013, quando os maracatus da Zona da Mata começaram a ser ameaçados pela polícia, que queria interferir nas celebrações em nome da “segurança pública da região”, a articulação de Siba foi central para trazer visibilidade à questão. “Essa situação me obrigou a pensar qual era minha posição na parada, porque não dava mais pra simplesmente fazer um disco baseado na música e na poesia do maracatu fazendo de conta que eu não sou quem eu sou, que eu não ocupo a posição que eu ocupo”, diz. 

Ano passado, ele articulou o lançamento do disco Sonorosa, de Mestre Anderson Miguel, jovem cantor e compositor de Nazaré da Mata.É uma ação política que me cabia, é um ativismo político. É uma responsabilidade que eu tenho. Mestre Anderson tem 23 anos, faz parte de uma geração que cresceu no Brasil de Lula, uma molecada que não viveu as restrições que os avós viveram. Ele tem uma voz maravilhosa, é poeta, com um repertório imenso, canta ciranda e maracatu no meio dos grandes. É uma renovação que está acontecendo há alguns anos e  eu tive um sentimento muito profundo de que eu tinha que fazer alguma coisa, que não cabia a mim fazer de conta que não estava vendo.”

O disco está na rua, com participações do calibre de Jorge du Peixe e Juçara Marçal, e produção de Siba. “Cirandeiro”, o hit do álbum, soma mais de 140 mil audições no Spotify e Mestre Anderson já ocupa palcos importantes, como o do Coala Festival, que reuniu milhares de pessoas em São Paulo. “Tento abrir espaços.  A banda dele é a minha e eu o chamo de "meu pirralho" e ele me chama de "véio, padrinho”, diz, com carinho. Aos 50 anos, toda vez que Siba dá um passo, o mundo continua saindo do lugar. 

Créditos

Imagem principal: José de Holanda/Divulgação

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