Salve-se quem puder

por Redação

As crianças da favela têm medo dos policiais. Quando eles chegam fritando os pneus, a molecada corre para a casa mais próxima

Fui convidado a conhecer o movimento Zumaluma. Não imaginava, quando vi, coração acelerou. O espaço seria exatamente o desejado para trabalhar com os jovens do bairro em que estou residindo. Encravada na favela do Inferninho (FDI, para os íntimos), Jardim Santa Tereza, Embu das Artes, SP, lá estava a casa. Nas tradicionais cores avermelhadas do barro que descolore aquele imenso conjunto de casinhas em rápido processo de verticalização. É o centro, como uma nossa senhora em véus de lama vermelha que, como lava viva, a tudo envolve.
Com os sapatos recém-engraxados e já sujos de barro, adentrei sem saber o que esperar. Claro, sabia das dificuldades; moro no bairro ao lado. As pessoas que levavam aquilo no peito estavam todas desempregadas, correndo atrás de fazer bicos. Estão retomando o movimento e dando um outro enfoque; as crianças mais novas da favela fazem oficinas de hip hop, grafitagem, DJs, dança de rua e atividades do gênero. Dentro da casa, uma sala com alguns microcomputadores velhos em que meninos e meninas estavam debruçados, vidrados, completamente concentrados. Ao lado, sala em que poucas estantes exibem livros honradamente desbeiçados, descorados e gastos pelo uso. Amo esses livros; emociono-me ao vê-los: a quantos fizeram sonhar?

Nos reunimos, eu e as pessoas responsáveis pelo lugar, em salão improvisado na parte posterior da casa. Conversávamos sobre o que poderia ser feito. Havia trazido minha pequena contribuição. Alguns livros e o heróico laptop que o amigo Fernando Bonassi havia me dado quando ainda estava preso. Velhinho e ultrapassado, mas acho que operante.
Percebi que algo insólido estava acontecendo. O Crânio saiu apressado. Na volta, trocou sinais e ficou na porta. Uma viatura da polícia havia adentrado na favela. Os policiais haviam prendido alguém. Rapidamente tentaram explicar o inexplicável: os policiais estavam acostumados a invadir de armas em punho. O rapaz estava na porta para pedir aos soldados que guardassem as armas para não assustar as crianças e o visitante. Claro, aquilo não me assustava. Conheço como as tais “autoridades” maltratam o povo, particularmente o jovem da periferia.
E não adiantou. Entraram acintosos, arrogantes, de armas embaladas nas mãos, apontando, escolhendo alvo. Algo de louco acontece com a gente quando deparamos com o buraco do cano apontado em nossa direção. Seja nas mãos de quem estiver a arma, polícia ou bandido, estremece tudo por dentro.
Não me chocava, mas entristecia profundamente que estivessem fazendo tudo isso ali, onde o trabalho é inteiramente voltado para as crianças. Questionados, vão dizer que estão protegendo a população do domínio de bandidos. Esse discurso pode funcionar no noticiário da televisão, mas para a população essa demonstração inútil de poder se traduz em humilhação, maus- tratos e desrespeito. As crianças da favela têm medo dos policiais. Quando eles chegam fritando os pneus, a molecada corre para a casa mais próxima. Todos, sem exceção, querem ser bandidos, jamais policiais, nas brincadeiras.

O povo ali aprendeu a se policiar para não necessitar de polícia. Não são eles que compram droga na “bocada” da favela; não têm dinheiro para tais extravagâncias. Então, só têm a ver com isso quando a polícia adentra suas casas de armas em punho à procura não se sabe do quê. Forçam, invadem e espancam, afirmando que favela não é residência, portanto não carece de mandato judicial. As questões são resolvidas na comunidade. Na favela, como na prisão, não há roubos. É proibido, e a transgressão a essa lei não escrita é paga com a vida. A polícia aparece nessas horas somente para elaborar o boletim de ocorrência e levar cadáveres. Não há culpados, todos sabem que apenas um problema foi solucionado.
As coisas estão assim: os que podem estão se fechando em condomínios com guardas armados e sofisticados aparelhos de segurança que, diga-se de passagem, não dão garantia nenhuma. Segurança é mercado superconcorrido e extremamente mentiroso; poucos entendem, mas a procura promove a demanda do esperto. Aqueles que não podem, se fecham em comunidades, armados da pena capital. Em meio à atual crise socioeconômica-política, a polícia atua, sem saber bem o que fazer, e salve-se quem puder.

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