Saciedade de espetáculo?

por Paulo Lima
Trip #226

Afinal, o que os ícones e símbolos que elegemos dizem sobre nós?


São aproximadamente 22 horas na capital fluminense. Hora de criança estar na cama, diriam os mais velhos. Ao contrário, no elegante hall de entrada de um condomínio em São Conrado, conhecido por abrigar um número significativo de famosos sobre suas amplas lajes, três pequenos aguardam em prontidão munidos de bloquinhos e canetas. O menino era o mais velho do trio. Aparentando cerca de 8 anos, pele bem clara e algum sobrepeso, era uma espécie de líder do trio composto também de duas garotinhas menores e mais novas. Os três estavam compenetrados e nenhum deles sorria. Era dia de festa no prédio. Uma figura ligada ao mundo da televisão comemorava seu aniversário. Não era uma celebração das grandes. Umas 60 pessoas deviam estar na lista. Mas os impassíveis vigilantes mirins sabiam que naquele pesque-pague de famosos havia boas chances de que alguns peixes graúdos dessem as caras naquela noite. A cada pessoa que chegava, o pequeno efebo e suas duas minidamas de companhia faziam uma abordagem cirúrgica, guardando alguma distância mas chegando perto o suficiente para que seus olhares interpelassem os convidados e os fizessem interromper suas marchas. Uma vez interceptadas as vítimas, o líder do pack disparava uma palavra apenas, seguida de um ponto de interrogação impaciente:

Globaischhh?

Com o acento revelador de uma carioquice de clara e gema, lançavam a pergunta fatal. Uma espécie de detector de mentiras cerebral vinha colado à indagação e aos três olhares lancinantes. Nunca vou me esquecer daquelas expressões. Um misto de desprezo, indignação e pena que despertei quando, acuado, revelei minha condição de mísero cidadão de casta menor, sem qualquer vínculo com o reino do Jardim Botânico naquela longínqua era pré-Projac. Ver os menores fechando seus blocos de autógrafos e se afastando sem proferir um vocábulo sequer foi uma experiência antropológica complexa.

Alguns anos depois, uma figura longilínea, sorridente e calma entra a passos medidos pelo corredor de recepção da Trip. Correntes sanguíneas, femininas ou não, se aceleram diante da presença de Reynaldo Gianecchini na casa editorial. Recebo o convidado no estúdio de rádio. Rapidamente ele cumprimenta a todos de forma carinhosa, se põe confortável e a falar de forma gentil e comedida sobre sua história, suas escolhas e a forma como lida com a vida. Finda a entrevista, me despeço com um sentimento de simpatia por aquela figura tranquila, de certa forma frágil e muitíssimo diferente da imagem projetada ou idealizada do galã das novelas globais.

Menos de cinco dias depois, o mesmo homem que me falou sobre a gratidão que sentia diante do carinho que recebia nas ruas e ao mesmo tempo de certo desconforto que o assédio gerava em alguém criado numa cidade pequena e numa família discreta, descobre um linfoma não Hodgkin, espécie de câncer agressivo e de gravidade alta, e passa a lidar com um tsunami emocional gigante, tratamentos muito invasivos, com a perspectiva real de uma morte prematura e com o temporário desmonte de sua imagem. A começar pela física.

Mais do que teorizar sobre algo tão ancestral quanto fascinante e assustador, nosso desejo nesta edição da Trip é navegar pelos mapas, becos e quebradas daquilo que costumamos chamar de imagem. Do que se trata afinal? Quem é Reynaldo Gianecchini, por exemplo? O que muda na cabeça , no corpo e no espírito de alguém que vê o pêndulo guinar de um extremo ao seu diametral oposto e vive para ver esse mesmo pêndulo voltar para um lugar ainda mais celebrado do que o ponto de partida original? Que mecanismos movem o culto às celebridades? O que é exatamente uma celebridade? Como se sentem aqueles que estiveram no centro do espetáculo e involuntariamente tiveram de deixá-lo? O que índios da Amazônia imaginam que possa lhes acontecer quando passarem a ser vistos como campeões olímpicos em vez de seres carentes de tutela e parcialmente incapazes? O que leva uma garota que dá aulas de ioga para cegos a querer ver sua imagem nua impressa numa revista?

Afinal, o que os ícones e símbolos que elegemos dizem sobre nós?

Paulo Lima, editor

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