Estou desacelerando para cuidar da minha saúde. Meu coração, pulmão e fígado já não são mais os mesmos. A liberdade que busquei, emancipar-me das proibições sociais, revelou-se uma armadilha

Minhas escolhas me obrigam a desacelerar. De repente, fiquei doente. Fiz exames que mostraram o coração, o pulmão e o fígado mais enfraquecidos. Já não sou o mesmo e não serei mais. Estou tomando remédios diariamente. E a responsabilidade é toda minha. Não existe quem eu possa culpar pelo que está me acontecendo. Sou responsável pelas escolhas que fiz. A liberdade que busquei, emancipar-me das regras e proibições sociais via abusos inconsequentes, revelou-se uma armadilha. A liberdade nos remete imediatamente à responsabilidade, e ela é muito mais dura e inflexível que essa vida submetida a rotinas, regras e proibições.

Eu não havia percebido que, se a vida social desvaloriza a individualidade privilegiando o senso comum e o coletivo, ainda assim, restava a singularidade. Queremos ter para comprar e nos dar importância, por meio de símbolos de consumo. O carrão importado, o apartamento duplex, as roupas de grife, por exemplo. Procuramos o destaque para sentir que somos indivíduos e que estamos por cima, no comandvo de nossas vidas, além das imposições e dos limites sociais. Mas todas as pessoas também querem o mesmo, como a classe chamada de C, hoje capitalizada e consumindo como a classe B. Isso extingue a individualidade e o destaque conquistado pela classe “B” e submete a todos – C e B – aos mesmos patamares de consumo, regras e sistemas. A classe B então sente a pressão, rejeita a classe C e corre atrás da individualidade perdida.

O problema é que, nesse esforço, nos esquecemos da singularidade. Cada pessoa é única e tudo o que somos vem da relação com os outros. Começamos despidos de posições, status e diferenças. Construímos a nós a partir do relacionamento com cada pessoa que encontramos ou desencontramos na existência. Somos seres nascidos para os outros: eles nos formam e nós os formamos. A cultura do consumo materialista e do utilitarismo nos reduziu a uma luta vazia pela individualidade, para sermos diferentes dos outros. Porque tudo o que podemos conquistar de material para afirmar nossa individualidade e exibir nosso destaque é relativo ao tempo e ao espaço. Uma queda na bolsa de valores, uma súbita alta do dólar ou a saúde comprometida por escolhas erradas, por exemplo, nos deixa novamente submetidos ao mesmismo e às regras e proibições comuns da vida de todos. Exatamente porque ter é relativo e somente ser é definitivo.

CORAGEM E ELEGÂNCIA

Desacelerar para mim vai significar essa volta à singularidade, ao que construí em mim e que serve para os outros. Cumpri bem mais de 30 anos de condenações e, na prisão, não morre somente a vida. Porque morrem os sentimentos, a razão, o respeito por si mesmo e pelos outros, além da autoestima. Fico orgulhoso de haver lutado muito, às vezes desesperadamente, para me conservar inteiro. Em mim nada morreu, ao contrário, muita coisa nasceu. Estou com 40 anos de leituras em busca de aprofundamentos. São 13 anos escrevendo, falando e ensinando. Tenho cinco livros publicados, um novo já editado e saindo do forno e mais dois prontos, na fila de espera. Não me tornei diferente dos outros, mas singular. Não há muitos que tenham alcançado essa singularidade e isso se deve ao meu esforço pessoal.

Estou desacelerando para poder manter minha saúde. Continuo querendo ir mais longe, quero parar e pensar em como viver para e, ao mesmo tempo, com os outros. Sonho em me dedicar mais, estudar mais para escrever e falar melhor para os outros. Construir uma mensagem mais verdadeira, fazer minha parte com elegância e coragem. Ser mais sorrisos, mais boa vontade, exercer minha singularidade e contribuir com minha parte para um mundo melhor para que eu, como todos, possa viver melhor.

*LUIZ ALBERTO MENDES, 62, é autor de Memórias de um sobrevivente. Seu e-mail é lmendesjunior@gmail.com

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