Aos 54 anos, o agora cidadão Luiz Mendes sentará o dedo na urna pela primeira vez: ”Acho que vou me sentir mais brasileiro”
“De quanto mais coisas um homem se envergonha, mais respeitável ele se torna” – Bernard Shaw
Na prisão havia uma frase constantemente repetida, a ponto de tornar-se quase uma verdade: “Ou você tira cadeia, ou a cadeia te tira”. O que quer dizer? Bem, é complexo, como todo tipo de manifestação humana. Ou você cumpre a sua pena com dignidade e moral no convívio com todos, ou a prisão te engole e você é anulado como pessoa digna de respeito, ou morto.
Lutei desesperadamente para preservar minha dignidade. Cheguei ao cúmulo de assassinar dentro da prisão para manter minha moral. Nunca fui bandidão. No máximo fui um bandidinho pé-de-chinelo. Descobri, não tarde demais, que esse não era meu ramo. Já estava condenado a mais de 100 anos e devia ir até o fim. E fui.
Trinta e um anos e dez meses de vida dura: solidão, espancamentos, torturas físicas e morais no começo. Depois foram as rebeliões que nunca me envolvi ou promovi, mas sempre estive lá na hora de todos apanharem do Choque da PM e sofrerem privações.
O pior é ser obrigado a abaixar a cabeça para pessoas totalmente desqualificadas para as funções que exercem. Ter que dar satisfação de cada um de seus gestos. Medir a língua porque, com certeza, o pegarão pela palavra. Carregar por dentro o inferno da dor e todas as fúrias. E ser obrigado a calar, nunca chorar (pelo menos não em público) e ser educado, respeitoso.
Outra lei que seguia à primeira acima citada: “Cadeia a gente sabe quando entra, mas não sabe se sai”. Para não ser tirado pela prisão, é preciso renunciar à idéia de sair em tempo legal. É preciso viver somente em tempo real; o processo é de sobrevivência. E eu, pobre de mim, sempre só me restou cumprir os 30 anos que a Constituição exige. Não havia esperanças. Mas haveria de sair, disso somente eu sabia. Quem viu aquele pouco mais que menino chegar, aos 19 anos, não acreditava. Achou que ele seria abatido no percurso, não agüentaria a aspereza do caminho. Não podia deixar a prisão me tirar porque então perderia a dignidade. Tudo o que o preso tem é sua dignidade, o respeito que conquistou. Mas estava determinado a sair, mesmo após os 30 ou 40 anos que fosse. Queria ser um cidadão, respeitado e reconhecido. Queria vencer como todos, sabia que era capaz e não aceitava vantagens.
E havia os livros, esse capítulo à parte de minha história. Conheci os grandes mestres, e sei lá de onde cresceu em mim uma vontade irresistível de escrever. As palavras, tão filhas minhas, eram vozes caladas onde eu alinhavava gentilezas e costurava ausências. Principalmente havia a sede, a voracidade de viver o que me fora negado a vida toda. Precisava disso para ser, por mais inviável que parecesse. Minha mãe dizia que eu sempre fora teimoso como uma porta, mas acho que era apenas um coração à espreita.
Cheguei. Estou aqui fora faz dois anos e meio, trabalhando, lutando com todas as minhas forças para permanecer à tona. E acho que estou conseguindo. Dinheiro, não tenho. Sou como as gueixas, artista do mundo flutuante. E agora vou chegar à coroação de meu desejo maior: a cidadania. Aos 54 anos de idade, vou votar pela primeira vez. Lutei dois anos para conseguir meu título de eleitor. Exigiram tanta documentação que quase inviabilizaram.
E agora? Acho que vou ficar meio bobo diante da urna. Vou tremer, meus pés e mãos irão suar e quase vou passar mal, como acontece quando falo em público. Em quem votarei? Eu sei que isso é o mais importante da festa: saber em quem votar. Mas isso para mim, perdoem-me, vem depois. Estarei para gozar o sucesso de ter chegado a ser um cidadão.
É óbvio que há muito tempo escolhi meu lado. Sei exatamente em quem votarei, e meu voto é pensado. Nenhum deles me deu nada, apenas um deles conheço pessoalmente, e serão cinco escolhas. Conheço a trajetória de cada um deles, leio jornais e assisto a noticiários, estou consciente da responsabilidade do ato de votar. Tenho esperanças de um país melhor e mais justo com seu povo. Sei que o poder corrompe, mas a falta de poder corrompe mais ainda.
Não escolho somente para mim. Escolho o que considero melhor para todos nós. E todos aqui significam ricos e pobres. Dizem que no Brasil política consiste em não deixar a onça morrer de fome e nem o cabrito morrer. Eu já creio que estamos em um espaço único e tudo afeta cada um de nós. É preciso saber. O problema maior é que as pessoas necessitam pensar, e nem todos parecem dispostos a isso, embora as pesquisas mais recentes indiquem que o brasileiro gosta de votar. Não vejo a hora, o que para todos é rotina, para mim será honra sem tamanho. Acho que vou me sentir mais brasileiro.