Rumo à imortalidade

por Henrique Goldman
Trip #225

Livres dos limites carnais dos nossos corpos, poderemos viver eternamente. Será?

Uma antropóloga argentina fala que, num futuro não muito distante, o homem será um misto de corpo humano e artifício técnico. Livres dos limites carnais dos nossos corpos, poderemos viver eternamente. Será?

Li na semana passada um inquietante texto da antropóloga argentina Paula Sibilia. Gostaria de simplesmente reproduzi-lo, mas, como não estou autorizado a publicar, me limito aqui a citá-lo e comentá-lo. O título do ensaio me tirou o sono: “Rumo à imortalidade e à virtualidade. A construção científico-tecnológica do homem pós-orgânico”. Homem pós-orgânico!? No resumo introdutório, Paula Sibilia explica: “O ‘pacto’ entre o homem contemporâneo e a tecnociência visa a ultrapassagem das limitações da organicidade, apontando para a construção de um ser híbrido ‘pós-biológico’, misto de corpo humano e artifício técnico. O homem ‘pós-biológico’ almeja se desvincular das restrições espaciais e temporais ligadas à sua materialidade orgânica, para atingir a virtualidade e a imortalidade”.

Paula Sibilia acredita que vivemos em um novo limiar histórico-tecnológico, no qual surge uma possibilidade inusitada: o corpo humano, na sua antiga configuração biológica, estaria tornando-se “obsoleto”. Estaríamos inaugurando uma nova era: a da “evolução pós-humana” ou “pós-evolução”, que supera amplamente, em velocidade e eficiência, os lentos ritmos da evolução natural.

Num futuro não muito distante, poderemos então “downloadar” para hard drives tudo o que há em nossas psiques – a totalidade das nossas memórias, nossas consciências e inconsciências, nossas almas e nossos espíritos. E uma vez livres dos limites carnais dos nossos corpos perecíveis, poderemos viver virtualmente, eternamente. Quando formos virtualizados, o cosmo inteiro ao nosso redor será também virtualidade. Mas eu tinha a impressão de que já éramos virtuais. Quem pode nos garantir que isso tudo que achamos que estamos vivemos é uma realidade? Quem pode garantir que nós mesmos – e o mundo em sua totalidade – existimos?

Fim da história

Citando, como faz Paula Sibilia em seu brilhante ensaio, o historiador americano Francis Fukuyama: “A biotecnologia fornecerá os instrumentos que nos permitirão realizar o que os especialistas em engenharia social não conseguiram. Neste estágio, teremos encerrado definitivamente a história humana, porque teremos abolido os seres humanos enquanto tais. Então começará uma nova história, para além do humano”.

Não resisto: transporto esta perspectiva para uma dimensão pessoal. Meu corpo envelhece e, com certeza absoluta, vou morrer, apodrecer. Mas um dia, talvez, uma essência virtual de mim mesmo possa passar a existir para sempre na memória de uma máquina. Viverá também nessa máquina o profundo amor que sinto ao tocar com o rosto a barriguinha do meu filho? E a memória da dor dilacerante que senti quando fui deixado pela minha primeira namorada? Será possível imortalizar aquela dor? Será possível “downloadar” também a sensação do desgosto específico que sinto quando ouço algum imbecil definir algo como sendo “top de linha”? E a horripilante vergonha do mundo que sempre senti ao ouvir a Elis Regina cantando “Tá cada vez mais down no high society”? Será ela – a vergonha – traduzível em bites? Armazenável em chips? Imortalizada e transportada para Marte? E, se for, para quê?

*Henrique Goldman, 51, cineasta paulistano radicado em Londres, é diretor do filme Jean Charles. Seu e-mail é hgoldman@trip.com.br
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