Médicos e especialistas consideram a possibilidade da maconha se tornar remédio
Nos bastidores de universidades, médicos e especialistas conspiram para a criação de uma agência para regulamentar o uso medicinal da maconha no Brasil
Pouco se fala sobre o assunto, mas há uma brecha na lei de 2006 sobre drogas que abre a possibilidade de criar no Brasil uma agência para o uso medicinal da maconha, assim como já existem órgãos semelhantes em países como Holanda, Canadá e Reino Unido. "É algo que passou meio batido, mas está lá", afirma o professor da Escola Paulista de Medicina da Unifesp Elisaldo Carlini, um dos mais respeitados especialistas nos estudos sobre maconha no Brasil. Fundador do Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas) e membro do comitê de peritos da Organização Mundial da Saúde sobre álcool e drogas, Carlini, 81 anos, é um dos pioneiros nessa área no país, onde atua há quase seis décadas.
Em maio do ano passado, Carlini organizou um simpósio internacional em São Paulo para discutir os efeitos terapêuticos da maconha e a criação de uma agência brasileira reguladora da Cannabis medicinal. No fim do evento, foi elaborada uma carta com um pedido ao governo para que seja criada a agência com base na lei 11.343 de 23 de agosto de 2006 e no decreto 5.912 de 27 de setembro do mesmo ano (veja na pág. ao lado). Para ser implementada, a proposta precisa do aval do Conad (Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas), órgão responsável por estabelecer as orientações da política sobre drogas, com representantes do governo e da sociedade civil. No Conad, a iniciativa não foi colocada em discussão.
Pela proposta do Cebrid, o Ministério da Saúde – por meio da nova agência – seria o responsável pelo controle do plantio, coleta, preparação e distribuição dos medicamentos à base de maconha. Carlini, no entanto, reconhece que há forte resistência para que isso aconteça. "Quando o assunto é maconha, os debates são acalorados. Há muito conservadorismo. Muitos ainda veem a maconha como a 'erva do diabo'. Acham que liberar a maconha medicinal é o primeiro passo para o 'liberou geral'. Por isso, querem manter proibido o uso terapêutico também, o que é um erro", diz o doutor. Um dos especialistas contrários à iniciativa é Ronaldo Laranjeira, professor titular do departamento de psiquiatria da Unifesp e coordenador da Uniad (Unidade de Pesquisa em Álcool e Drogas). "Sou contra. A maconha não é uma droga diferente das outras. Faltam evidências de que seria um bom investimento científico e médico criar um órgão como esse. Além disso, já existem agências como CNPq e Fapesp que podem estimular pesquisas sobre maconha", argumenta.
Os defensores da nova agência, no entanto, reclamam que existe hoje uma enorme burocracia para fazer esses estudos no país. "Você tem que elaborar um projeto que precisa ser aprovado pelo conselho de ética da instituição que vai fazer a pesquisa. Esse projeto deve ser enviado a Brasília para ser aprovado no Ministério da Saúde para então ser possível importar a maconha. Depois há toda uma burocracia para a importação. Tudo isso leva anos e acaba inviabilizando os estudos", diz Carlini. Além das pesquisas sobre a planta, o professor defende que a população possa ter acesso a ela por meio do uso médico controlado. "Mas sou a favor apenas do uso medicinal. Sou contra o uso recreativo", faz questão de frisar o professor.
Carlini aponta uma série de indicações terapêuticas da maconha, como aliviar os enjoos provocados pela quimioterapia em pacientes com câncer ou aumentar o apetite em pessoas com Aids. Medicamentos à base da Cannabis sativa já são comercializados em países como Canadá, Reino Unido e Holanda e em regiões dos EUA. A Califórnia foi o primeiro Estado americano a legalizar o uso da maconha para fins medicinais após plebiscito em 1996. Desde então outros 15 Estados seguiram o exemplo. Em solo californiano, qualquer residente acima de 18 anos com prescrição médica pode comprar remédios à base da planta em farmácias especializadas.
ATÉ A RAINHA VITÓRIA
Mas, se hoje o uso médico da maconha provoca um debate acalorado, há um século ele era permitido em diversos países, inclusive no Brasil. No início do século 20, a planta era encontrada nas farmácias do país como um medicamento sob a forma de cigarros. Uma propaganda de 1905 indicava as cigarrilhas Grimault para "asma, catarros e insônia". Na Inglaterra, em fins do século 19, ninguém menos do que o médico da rainha Vitória recomendava o uso. "A maconha indiana, quando pura e administrada cuidadosamente, é um dos mais valiosos medicamentos que possuímos", afirmava o doutor J. R. Reynolds. A planta é conhecida há milênios pela humanidade. Ela faz parte da farmacopeia Pen Ts’ao Ching, escrita pelo imperador chinês Shen Nung em 2700 a.C Há registros de seu uso em diversas outras civilizações da Ásia, do Oriente Médio e da África.
A recente "demonização" da erva começou na década de 20, na 2ª Conferência Internacional do Ópio, em 1924, em Genebra, da qual participaram 44 países, inclusive o Brasil. O delegado brasileiro Pernambuco Filho, aliás, teve papel fundamental para transformar a maconha em "droga maldita". O encontro da Liga das Nações (antecessora da ONU) era para discutir o controle do ópio e da cocaína, mas o Egito pediu para introduzir a maconha na agenda de discussão. Foi a deixa para o representante brasileiro entrar em cena e dizer que "a maconha é mais perigosa do que o ópio" . No fim, a planta entrou na lista das drogas que deveriam ser proibidas e, como resultado, a repressão contra o uso no Brasil e em outros países apertou.
O passo seguinte – e cujos efeitos nós sentimos até hoje – foi a Convenção Única de Entorpecentes da ONU, assinada em 1961 por mais de 200 países, dentre eles o Brasil. Na ocasião, a maconha entrou em duas listas: na primeira, como sendo sem utilidade médica e, na quarta, das drogas que são dotadas de propriedades particularmente perigosas, ao lado da heroína. "Isso é um disparate, um despropósito, não tem fundamento científico nenhum. Mas está lá até hoje!", reclama o doutor Carlini, firmemente engajado em sua luta pela regulamentação da maconha medicinal no Brasil.
Cannabis
Indicações
• Combate náusea e vômitos provocados pela quimioterapia em pacientes com câncer
• Desperta o apetite em vítimas de Aids ou câncer, proporcionando ganho de peso e melhora do estado nutricional
• Reduz as dores e os espasmos musculares em pessoas que sofrem de esclerose muscular múltipla (doença degenerativa do sistema nervoso)
Fonte: Cebrid (Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotrópicas), da Unifesp
O LADO B – VÍCIO E DEPENDÊNCIA
Apesar das propriedades terapêuticas da maconha, seu uso abusivo também pode provocar dependência como ocorre com outras substâncias como o álcool. De 2006 a 2010, Hercilio Pereira de Oliveira, do Grea (Programa Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas) do Instituto de Psiquiatria da USP, desenvolveu um projeto de pesquisa com dependentes de maconha que procuravam tratamento no Hospital das Clínicas, em São Paulo. Veja a seguir as respostas do psiquiatra às principais dúvidas que envolvem a questão da maconha e os danos à saúde.
Qual é a porcentagem de usuários que experimentam maconha e se tornam dependentes? Como é essa proporção para o álcool e o cigarro?
Para a maconha, esse número é de 1 para cada 10 a 11 usuários. Para o álcool é um pouco menor, de 1 para 9. Já para o tabaco essa relação é 1 para cada 3, ou seja, a porcentagem de usuários que se tornam dependentes de tabaco é muito maior do que no caso da maconha.
Qual é o perfil dos dependentes de maconha que procuram o Grea?
São homens de classe média com idade entre 20 e 35 anos com padrão de uso da maconha desde o início da adolescência, dos 12 aos 15 anos. Eles adotaram o uso progressivo da maconha, chegando a fumar em média cinco baseados por dia. Esses pacientes geralmente começam a usar maconha na adolescência como uma droga de vínculo social, com os amigos da escola. Na idade adulta, têm tendência a priorizar o uso de modo isolado. Passam a usar sozinhos geralmente em casa.
O que configura o vício?
Ele ocorre quando há um padrão contínuo e persistente no uso da substância, com o consumo de doses progressivamente maiores. Se a pessoa tenta interromper, tem manifestações físicas e psíquicas, que configuram a síndrome de abstinência. E, a despeito de prejuízos sociais e familiares enormes provocados pelo consumo da droga, esse indivíduo tenta interromper o uso mas não consegue.
Como são as crises de abstinência de maconha? Quais são os sintomas?
Quando falamos de abstinência de uma substância, geralmente falamos de sintomas contrários àqueles que ocorrem quando a pessoa se intoxica com ela. O quadro de abstinência da maconha é caracterizado por irritabilidade, ansiedade, perda de apetite, insônia e reações de agressividade verbal ou física. Esse quadro pode durar de 10 a 15 dias.
Como é feito o tratamento?
É um trabalho multidisciplinar, com atendimento médico, de psicoterapia e de serviço social. Existe uma enfermaria para internação em casos específicos. O atendimento médico é individual e o de terapia é feito em grupo, com enfoque na prevenção da recaída. Também são usados medicamentos em alguns casos.
Existem medicamentos que ajudam a combater o vício?
Não existem medicações aprovadas para tratar a dependência da maconha, mas nós tratamos os transtornos associados que esses pacientes têm, como de humor e de ansiedade. Até cerca de 70% das pessoas que são dependentes de maconha têm algum transtorno associado.
Quais são os danos de saúde provocados pela maconha?
O problema mais grave é que a maconha pode desencadear transtornos psiquiátricos, como a esquizofrenia. Também existe boa documentação científica a respeito do prejuízo cognitivo, com dificuldade de memória, atenção, funções executivas e organização. A pessoa pode desenvolver esse tipo de alteração, mas estudos apontam que isso é reversível. Em três meses a pessoa pode restituir o poder cognitivo. Existem ainda os problemas pulmonares provocados pela ingestão da fumaça.
Maconha é porta de entrada para outras drogas?
Todo mundo que tentou provar isso não conseguiu. O que é mais considerado hoje é que a pessoa vai utilizar uma droga que pertence ao meio social no qual ela está inserida, à qual ela pode ter uma maior vulnerabilidade por ter a ideia de que aquela droga não está associada ao risco. Depende do meio e da percepção dela e das pessoas que estão a sua volta sobre os prejuízos causados por aquela substância. Muita gente começa com a maconha porque é uma droga disponível. Mas poderia ser outra. Muitos adolescentes compartilham da ideia: “Meu amigo da escola usa e o cara continua sendo legal. Nem por isso ele virou bandido ou começou a usar cocaína”. Tem mais a ver com o meio social.
ONDE PROCURAR AJUDA PARA TRATAR A DEPENDÊNCIA
UNIAD – www.uniad.org.br
GREA – www.grea.org.br