Aos 47 anos, o skatista Jay Adams passa a limpo sua história de muita ou nenhuma liberdade

 

Como se deslizasse em um halfpipe, a vida de Jay Adams até hoje foi um sobe-e-desce acelerado. De um lado da rampa, Deus, a igreja e o amor familiar. Do outro, drogas pesadas, loucuras e a prisão. Um vaivém que Jay quer dar por encerrado agora, aos 47 anos, um mês depois de sair da cadeia. Caminhando com Jesus, escutando rock evangélico e tentando se redimir como pai, Jay está vigiado em um regime semi-aberto. Mas mais livre do que nunca – é o que diz ser, novo homem. Nem tanto... Sob os pés, é claro, sempre um skate. E sobre a cabeça o peso de um nome, de um legado colossal que ele próprio nunca quis.

Antes de ser maior de idade, já pipocavam alcunhas para defini-lo: “o melhor de todos”, “o mais espontâneo”, “a pedra fundamental do skate vertical”, “aquele que definiu o que é estilo em cima de uma pranchinha com quatro rodas”, e assim a coisa vai. Acontece que, de todos os skatistas do mundo, apenas um não considera Jay Adams um mito: o próprio Jay.
É o que diz, sem vestígio de falsa modéstia, toda vez que chegam as perguntas sobre a importância da... mítica geração de Dogtown. “Essa é uma das coisas que discordo no filme de Stacy Peralta”, desembucha na conversa encaixada nas horas vagas de seu novo ganha-pão – ajudante de um skate park na cidade de Costa Mesa, ao sul de Los Angeles.

Em 2001 foi às ruas Dogtown and Z-Boys, um documentário muito bem-sucedido em público e prêmios que remontou o nascimento do skate moderno, das manobras extremas, do uso de rampas e bowls a partir da rebeldia de uma turminha invasora de piscinas secas. Uma turma bem restrita – os garotos problema do bairro de Dog­town em Los Angeles, escalados por Jeff Ho (então dono de uma surf e skate shop) para formar uma equipe. Os Z-Boys. Grandiloqüente e cheio de reverência, o filme eleva a molecada do Zephir Team ao status de inventores de uma indústria, de um esporte e, mais do que isso, de uma cultura inédita, que redefiniu a idéia de rebeldia e liberdade no mundo todo. Mas, se o diretor Stacy Peralta é personagem crucial dessa história, Adams é ainda mais importante, alçado à condição de gênio. Um gênio desperdiçado.

Não foi bem assim”, diz logo de cara um gripado Jay. “A gente teve a sorte de ter sido muito bem documentado na época por fotógrafos e gente com filmadoras. Claro que éramos bons, claro que tínhamos estilo. Mas muita gente estava surfando em piscinas.” Mas vocês foram os primeiros, não? “Olha... nem os primeiros nós fomos. Teve gente que andou de skate em piscina nos anos 60! Estávamos entre os primeiros.” Até quanto ao lar disfuncional relatado no documentário, Jay não assina embaixo. “Meu pai desapareceu, era viciado em heroína quando eu nasci. Mas tudo bem, tive um padrasto muito legal, que me ensinou a pegar onda.”

Auto-indulgência não é com Jay Adams. Mesmo. Não só discurso, a biografia também prova. No instante em que o skate radical “nascido” em Dogtown chegou à mídia e milhões de garotos ficaram doidos com o esporte e a estética, o Zephir Team deixou de ser brincadeira. Patrocínios vastos, fama, capas de revista. Tudo de uma hora pra outra. Stacy Peralta logo começou a fazer vídeos das primeiras competições radicais. Tony Alva, o único no mesmo nível de técnica de Jay, montou uma marca e criou uma persona ególatra, um rock star. Jay, aos 15 anos de idade, não entrou nessa. Queria ser... ora bolas, livre.

“Não que eu não quisesse ganhar grana, mas não rolou. Skate era diversão pra mim. Não estava a fim de colocar um uniforme da Pepsi e fazer como eles queriam. Às vezes eu aceitava um patrocínio, mas pegava o dinheiro e sumia.” Aquele circo comercial todo, os deveres com o patrocinador, as agendas ficando apertadas... não fazia sentido. “Eu pensei que era melhor vender maconha. Só queria ser um cara de Venice, entende?” E, mais uma vez, discorda do filme de Peralta. “Me colocaram em um papel trágico, como se eu tivesse fracassado em algo. O que não diz é que eu fui um dos únicos que continuaram pegando onda e andando de skate. Eu fiz o que quis.”

Querendo ou não, sua fama o precedia. Se o business não era a sua, as festas a que um “mito” tem acesso interessavam... e muito. Maconha já estava na rotina mesmo. Álcool também. Logo um pouco de cocaína, depois um pouco mais... Até que... ele explica: “O skate morreu de novo no fim dos anos 70. E o pouco dinheiro que eu tirava disso acabou. Então comecei a vender cocaína e fiquei um bom tempo assim, sem maiores problemas”. Exceto um... Na saída de um show de punk rock, Jay arrumou briga com dois homossexuais. A pancadaria generalizou, e um dos rapazes acabou morto. Aos 19 anos, Jay passou seis meses preso por participar de um homicídio.

Pico no Havaí
De volta às ruas e noiado de tanto cheirar, Jay foi atrás de ondas e sossego no Havaí. Surfando muito, ganhando seus trocos com um pouco de droga e consertando pranchas no North Shore, se distanciou da indústria do skate de uma vez. Foi quando surgiu em sua vida seu irmão mais velho, um ex-junkie, saído da cadeia por conta de drogas. Ficaram muito próximos, e o movimento de entorpecentes aumentou no empreen­dimento dos Adams. Um dia, no aguardo de uma transação na casa do quilograma de pó, Jay recebe um telefonema. Seu irmão havia sido assassinado pela máfia mexicana, que estava atrás de dinheiro e quilos de cocaína. Seu pai e sua avó morreram em um espaço de seis meses. Jay se separou da mulher com seu primeiro filho, Seven, recém-nascido. E, para coroar a maré pesada, sua mãe foi morar com ele no Havaí. Ela estava com câncer, queria passar os últimos dias com Jay.
Nos 11 meses em que tomou conta da mãe, ele era encarregado pelas pílulas... que logo começou a usar também. Sob o efeito, sentia-se bem, não remoía a fase negra que vivia. Meio sem saber, ou sem pensar, Jay engolia com a mãe opiáceos, derivados de morfina. Assim que ela se foi, ele sentiu a primeira abstinência tremendo no sofá.

Logo Jay estava fumando heroína e surfando em uma temporada no México. Mas resolve se limpar e volta para o Havaí. Começa a freqüentar a igreja, vive com uma namorada, fica com a custódia do filho pela primeira vez. Meados dos anos 90, e tudo vai bem para Jay Adams. Por três meses estava muito feliz. Até que, bem antes de uma missa, alguém o chama pelo telefone: “Tenho um monte de heroína pra vender. Quero que você prove pra mim”. Ele recorda: “Fiquei pensando: igreja ou heroína, igreja ou heroína? Eu fui com a heroína...Cara, que erro enorme”.

Viciado e vendendo heroína, começa a irritar a namorada. Mentindo cada vez mais para manter o vício, um dia Jay pega a moça com um outro sujeito. A pancadaria que ele promoveu acabou bem mal. Mesmo com tantos anos de tráfico, foi por conta de ciúmes que Jay voltou para a cadeia. Ficou 15 dias em cana, mas com cinco anos de condicional. Nesse ponto Jay perdeu a namorada e a guarda do filho. “Fiquei louco mesmo. E comecei a usar muita droga. Foi quando, por falta de quantidade, injetei heroína. Aí meu vício ficou realmente sério. Porque, mesmo antes disso, se o mar tinha onda ou se uma sessão de skate estava marcada, eu não pegava pesado. Mas nesse momento eu não ligava nem de morrer.” Foram três anos assim, até que em uma batida em uma casa no North Shore acharam meio grama de heroína em sua carteira. Violação de condicional, a coisa ficou preta. Puxou três anos, direto.

Enquanto estava solto, Jay Adams era tudo, menos livre – “um escravo da droga”, define. Paradoxo que faz sentido: preso, se libertava. “Foi a melhor coisa que poderia me acontecer. Nunca usei drogas na cadeia e isso salvou minha vida. Eu não fiquei deprimido preso, pelo contrário, eu senti que estava tudo bem.” Saiu da cadeia, e o filme de Peralta foi às ruas, em 2001. De volta ao Havaí, Jay estava fazendo dinheiro com skate, patrocínios, a fama dando à porta sem que pedisse, de novo.

Quando outro telefonema o desviou dos bons ventos. Alguém queria levar uma carga de metanfetamina para o Havaí. Ele próprio não estava interessado. Mas fez a gentileza de apresentar um interessado no movimento. A vida continuou, largou de novo as drogas depois de uma recaída ao lado de uma namorada junkie e boas-novas: voltou à igreja e para a ex-mulher. Limpo, surfando, se casou com ela em definitivo. Quando estavam esperando uma filha ainda na barriga, a vida no eixo, nenhuma recaída à vista enfim... a polícia bate à porta. A gentileza que havia feito um ano e meio antes, a conexão para a carga de Ice, lhe rendeu outros dois anos e meio na prisão, de onde acabou de sair.

Livre na cadeia
Diferente de suas outras três temporadas, dessa vez estava tudo bem quando foi trancafiado. E, diferente das outras condenações, foi a mais... libertadora de suas penas. “Há 20 anos eu fico entrando e saindo da igreja. Ou fico limpo e vou à igreja, ou estou de volta fazendo loucura. Dessa vez, na cadeia, eu realmente fiz uma conexão com Deus, e não sou apenas um cara que vai à missa. Eu estou comprometido agora.”

Livre, Jay sabe que não é. “Sem dúvida mais livre do que há um mês”, releva. E quanto ao mundo? “Se é mais livre eu não sei, mas nos anos 70 o mundo era muito mais louco do que hoje, não tenha dúvida. Éramos um bando de selvagens, sabe? Se alguém ia surfar na nossa área a gente quebrava o cara. Hoje qualquer um tem celular e chama a polícia porque tomou um cuspe na cara. Em Dogtown era o velho oeste mesmo. Não dá para ser tão louco hoje em dia. O que é bom...”

Preso a um regime em que tem seus passos vigiados, precisa de autorização para fazer qualquer coisa diferente de ir trabalhar no skate park da Hurley. A única que conseguiu até agora foi para assistir aos X-Games, logo que foi solto. Quando viu Bob Burnquist, um atleta exemplar, endinheirado e pai de família, subindo no ar e dando giros de ficção científica, não acreditou. “Quando a gente estava em Dogtown qualquer manobra era novidade. E a gente ficava animado quando um conseguia sair um pouco do chão... mas se alguém me dissesse que um dia isso seria possível eu duvidaria.” Mas você se sente responsável de alguma forma por esse universo todo? “Bem, pelo negócio bilionário todo, não. Mas dizem que eu tenho estilo, né? E isso fez alguma coisa pelo esporte.”

Como estilo é algo que, uma vez na rua, se copia, Jay sabe que representou um exemplo de juventude a não ser seguido. Mas seus planos são bem outros agora. “Se eu usar essa minha energia, que é muito extrema, para algo que não seja destrutivo e louco, posso fazer muita coisa boa. Quero explicar em aulas o mal que as drogas fazem. Que o que eu fi z foi por ignorância mesmo.” Ele é protagonista de um novo documentário, D.O.P.E., que relata a ascensão e queda de astros de skate, e vai usar sua não-buscada fama em campanhas antidrogas e cristãs. Como parte de um rebanho da igreja, acredita que Deus tem um plano para sua vida. Mas que ele, ao longo de sua longa juventude, andou na direção oposta. “Isso é pecado, ir contra o plano de Deus”, diz um quase redimido Jay. Pois provações ainda estão pela frente. Sua mulher mudou-se para o Alabama com a fi lhinha, que ele nunca conheceu. Ainda casado, não aceita a idéia de separação. Precisa convencer a desconfi ada mulher de que mudou. De que agora a coisa vai. Precisa também ter certeza de que sua ida ao Alabama não tem a ver com um possível novo namorado – algo de que ele desconfi a. Precisa provar ao mundo, e a si mesmo, que não vai ser o Jay Adams de sempre com recaídas e temporadas na cadeia. Que vai ser o Jay Adams de sempre: um gênio na arte de fazer manobras extremas e continuar ali, equilibrado – de pé.

COLUNA ITINERANTE: Partir Romper Voar
Por Francisco Bosco*

Há uma célebre cena em que Indiana Jones depara com um espadachim virtuoso, que brande com exímia destreza sua espada, procurando intimidar o adversário com sua demonstração de perícia. Diante de tal impressionante performance, Indiana faz a única coisa que lhe cabe: saca de um revólver e dá um tiro no espadachim, liquidando o problema.

Quase 2.500 anos antes, reza a lenda que o conquistador macedônio Alexandre, o Grande, chegava à Frígia, atraído por um problema que intrigava a Antigüidade. Um rei, de nome Górdio, deixara uma carroça amarrada no templo de Zeus com um nó impossível de desatar. Um oráculo havia profetizado que quem conseguisse deslindar o nó conquistaria o mundo. Muitos outros reis e guerreiros haviam tentado, mas todos fracassaram. Em sua vez, Alexandre postou-se diante do nó, olhou, examinou, pensou – e com um golpe de espada partiu-o ao meio.

Pois bem, o que têm em comum Indiana Jones e Alexandre, o Grande? Eles têm em comum a capacidade de realizar um ato. Um ato não é uma ação qualquer. Um ato é uma ação transformadora, que intervém na realidade, reconfigurando-a. O que as duas cenas acima revelam é que a realização de um ato implica uma mudança de paradigma. Um paradigma é um modelo, um padrão que determina um estado das coisas. No caso de Indiana, colocou-se para ele o paradigma do espadachim, isto é, do homem virtuoso em armas brancas; se fosse lutar com ele dentro desse paradigma, fatalmente perderia. Então ele saca o revólver e mata tanto o paradigma quanto seu adversário. A mesma situação impossível se coloca diante de Alexandre, cuja espada corta o paradigma do nó – que é o paradigma do pensamento, das especulações lógicas, da reflexão – e instaura, por esse ato, o paradigma da ação.

Muitas vezes em nossas vidas nos debatemos com situa­ções impossíveis, enredamo-nos em nossas próprias teias, e nos exaurimos tentando nos desvencilhar, sem sucesso. Compreender essas situações pode ser um passo importante, mas não basta, e às vezes é tanto um remédio quanto um veneno: o saber pode nos afastar do ato (sendo essa a tendência do sujeito neurótico). Em casos assim, só o ato liberta. E um ato é geralmente algo difícil de realizar. Costuma exigir uma alta concentração de força, um acolhimento da angústia, um retesamento das energias negativas que preparam o salto do ato. Não havendo esse processo, dá-se um ato em falso. Uma ação que não se sustenta, que não modifica a ordem das coisas e a situação, nela, do sujeito. Mas o verdadeiro ato é libertador, abre um rasgo nas coisas, faz surgir um céu e um caminho. E um ato requer uma mudança de paradigma para que possa sustentar-se: o nó górdio nunca mais intimidará Alexandre, pois este instaurou o paradigma da espada, da ação. De um grande e amaldiçoado labirinto, a única maneira de sair é: voando.

*Francisco Bosco é escritor, ensaísta e letrista, autor de Banalogias e Da amizade, entre outros. Sua coluna para a Trip, que estréia neste mês, não terá lugar fixo: a cada edição, seu texto irá acompanhar uma reportagem da sua

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Imagem principal: Vavá Ribeiro

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