Cultura e esperança esmagadas pelo abuso policial atrás das grades
Acordamos cedo com pancadas na parede da cela. Era o vizinho. Corremos à janela e ele nos alertou: o Choque da PM invadira a prisão. Voltamos para as camas, tentando reagir àquela porrada matinal. A primeira reação foi correr atrás de preservar o máximo possível de nossas coisas. Tiramos cortinas, dobramos toalhas, deixamos nuas as paredes dos quadros que meu companheiro de cela pintava. Levantamos tapetes e colchões.
Fazia um frio... Coloquei uma camiseta mas continuei de bermudas. Fazia parte da estratégia não se aquecer, era preciso estar com o corpo habituado ao frio. O frio faz tremer. A tensão e a certeza de que o desastre pode ser iminente fazem tremer os nervos involuntariamente. Dois tremores juntos podem levar ao colapso. Não podemos fraquejar. Não estaremos sós. Apesar de, há que haver alguma dignidade, não é mesmo?
E demoraram... A espera é pior. Os cães latiam nas galerias, atiçados pelos soldados, para nos colocar em pânico. Eu e o parceiro de cela não tínhamos o que conversar. A tensão estalava no ar. Esperávamos, apenas.
Apesar da espera, nos surpreenderam. Quando olhamos para a porta lá estava o escudo negro no guichê.
De cuecas, ladrão! Sentados lá no fundo da cela!
Mais do que depressa, lá estávamos, lado a lado, sentados de cuecas no chão gelado da cela. Eles passaram, metiam o pau na porta. Outros gritavam ofensas, todos tentando intimidar ao máximo possível. Trabalho de equipe.
Abriram a porta e o escudo negro apareceu tomando toda a entrada. Pôr cima, uma espingarda calibre l2 e uma metralhadora 9 milímetros
- Levanta, ladrão! Abaixa as cuecas e agacha!
Cumprimos à risca, prestativos. Homens enormes com fardas camufladas e armas. Saímos correndo agachados, aos gritos dos soldados. Outros policiais militares nos colocaram de joelhos em fila, na frente de outros companheiros de infortúnios. Doeu quando ajoelhei e continuou doendo o tempo todo. Mas ali era preciso concentração para não fraquejar. Olhei para o parceiro e comuniquei o que recebi dele: firmeza!
Então perguntaram quem morava na cela em que estávamos lotados. Nos apresentamos. Um soldado queria saber quem de nós dois era escritor. Apresentei-me. O homem estava com uma faca na mão, mandou que eu me levantasse e me aproximasse. Fiquei a certa distância, a faca era sinistra e eu não sabia o que se passava por sua mente. Perguntou o artigo pelo qual fora preso. Respondi. Quis saber onde cometera o crime. Contei um lugar qualquer.
Agora queria saber de meu livro. Havia dois exemplares do livro que eu havia escrito e editado pela Companhia das Letras. Contei algumas coisas. Mandou que voltasse para a posição de joelhos novamente. Os joelhos, já machucados, doeram esmagados por meu peso. Parecíamos criancinhas de castigo da professora.
Não demorou. Lá veio o soldado novamente. Agora acompanhado de um tenente. Não, eu não faria. Não podia. Eu e meus companheiros estávamos ali sacrificados, e ele queria que eu lhes desse o livro, além de autografá-lo. De modo algum. Eu não escreveria nada. Se quisessem levar o livro, que levassem, eu não podia fazer nada.
Ficaram ali, zombando de mim, fazendo-me de palhaço. Tenho o dobro da idade deles; o desrespeito é dolorido demais. Pensei, melhor seria que me espancassem. Logo nossa cela foi revistada e nos chamaram para retornar. O soldado deu-me o livro na mão, com certa cerimônia e dispensou-me.
A cela estava de pernas para o ar. A primeira coisa que achei foram meus óculos. Esmagados no chão, na entrada da cela, para que eu visse assim que entrasse. Um deles havia pisado em cima propositalmente. Era uma agressão, das mais violentas que já sofri. Eles sabiam que eu escrevia e que os óculos me eram ferramenta fundamental. Meus livros estavam jogados pelo chão, misturados com pó de chocolate e açúcar.
Com extremo cuidado, limpei todos e arrumei-os na prateleira. Só então dei por falta de um dos exemplares do livro que escrevi. Aquela entrega solene fora apenas uma maneira de marcar a devolução para que todos vissem. Como me queixar se todos viram que me devolveram? Uma revista TRIP também sumiu.
A cultura, como sempre, humilhada, esmagada e agora também roubada. Tomara que, pelo menos, meu livro possa ser lido pelos parentes de quem roubou. Pelo menos.