Quanto mais Kant melhor

por Diogo Rodriguez
Trip #195

Valter José é filósofo e diretor de filmes pornôs, no limite entre putaria e a crítica da razão pura

Valter José é filósofo especialista em Kant e diretor de filmes pornôs. Mergulhado nessa vida dupla, ele vive no limite entre a putaria e a crítica da razão pura.

Os habitantes da pequena cidade Nova Königsberg, no Paraguai, estavam prestes a enfrentar um grave problema. Descendentes de prussianos fugidos da Segunda Guerra, eles eram da mesma cidade do filósofo Immanuel Kant. O pensador era mais do que um ídolo para eles, que se vestiam e agiam como o autor de Crítica da razão pura. Quando o professor francês Jean Baptiste Botul fez uma visita ao local, foi convidado a ministrar uma série de palestras sobre a biografia de Kant aos moradores da aldeia, ávidos por mais informações sobre seu muso inspirador. Mas havia um porém. Consta na história que o filósofo era celibatário. Nunca se casou ou teve filhos, tampouco amantes. Botul se viu numa encruzilhada. Como revelar a verdade sem correr o risco de levar a aldeia à extinção por falta de procriação?

A história acima é uma ficção criada pelo jornalista Frédéric Pagès no livro A vida sexual de Imannuel Kant (1999). Mas a piada foi levada a sério na época de sua publicação, e veículos como Veja e Le Monde Diplomatique caíram na pegadinha. A aldeia não existe. Nem Botul. Só o recato de Immanuel Kant é verdadeiro: ele era mesmo celibatário. É uma ironia, portanto, que Valter José Maria Filho seja especialista justamente nesse pensador tão dedicado à disciplina mental que deixou os prazeres da carne de lado.

OK, Valter tem semelhanças com seu objeto de estudo. Aos 52 anos, ele não se casou nem teve filhos. Mora na casa dos pais, na zona leste de São Paulo. Filósofo, fez mestrado e doutorado sobre Kant e acabou de entrar no pós-doutorado da Universidade de São Paulo, onde é orientado por Franklin Leopoldo Silva, um respeitado professor dessa instituição.

Mas seria Valter um Kant brasileiro? Não exatamente. Além do currículo acadêmico repleto de artigos e dissertações de títulos enigmáticos (“A razão na época da sua efetuação” e “A reflexão e os dias” são alguns exemplos), ele tem um outro, com títulos bem mais explícitos: Sexo sem dinheiro, O bordel e Dispersas perversões. Valter é diretor de cinema pornô. Com mais de dez filmes no currículo, tem uma vida dupla que faria arrepiar os cabelos do contido Kant. Gasta quatro horas por dia lendo tratados filosóficos em francês, inglês e alemão. Outras incontáveis horas passa no Twitter seguindo atrizes pornôs e procurando novidades no mundo do sexo explícito. Os dois gostos não se misturam, porém. “Eu acho que hoje a pornografia não é mais um tema. Estou preocupado com outras coisas, com metafísica. É sério, mas é diversão.”

A alta cultura e a baixaria começaram mais ou menos na mesma época. Aos 19 anos, viu seu primeiro pornô, Atrás da porta verde, emprestado por um primo que trabalhava numa produtora de vídeo. Filmes pornográficos eram proibidos pela ditadura militar e só estavam disponíveis na surdina. Gostou e virou fã, mas só pôde começar a exercitar seu hobby depois que o Brasil virou novamente um país democrático. “Eu frequentava os cinemas da Boca do Lixo. Na época, o cinema era muito barato. Com R$ 5 dava para assistir a dois filmes. Eu ficava entre os filmes de arte e os pornôs.”

Entrou na faculdade de filosofia da USP em 1979 e ali descobriu o outro traço marcante de sua vida: o estudo. Nos anos 80 trabalhou como jornalista de cultura para veículos como Folha de S. Paulo, Set, O Estado de S. Paulo e Guia do Vídeo Erótico, escrevendo resenhas e fazendo perfis de atrizes e diretores de filmes de sacanagem. O mestrado completou em 1989 e o doutorado, em 1997, enquanto se especializava em Kant, cinema pornô italiano, francês e americano. No começo dos anos 90, fez assessoria de imprensa para as empresas do ramo: Private, Brasileirinhas e Ponto G. Só em 1999 ele iria dirigir seu primeiro filme, Eróticas criaturas, pela produtora Buttman.

Anões, travestis e HIV

Valter aproveitou a chance para homenagear seus diretores favoritos do pornô (John Stagliano, Luca Damian e Joe D’Amato). Começou cheio de ideias, inspirando-se nos clássicos dos anos 70, porque nesses filmes “se filmava a relação sexual realisticamente”. Era multiuso no set. Dirigia, fazia câmera, produzia e selecionava as garotas. Estava finalmente vivendo o sonho e deixando as críticas de lado para ir às vias de fato. Chegou a produzir cenas para produtoras do exterior. Foi quando mais ganhou dinheiro, diz. “Chegava a US$ 5 mil por mês.” A grana parou de entrar quando um surto do vírus HIV assustou a indústria em 2004. Um ator teria contraído a doença no Brasil. “Os clientes não vieram mais. Depois disso deu uma parada razoável.”

Secou não só a fonte de sustento como também o tesão pela profissão. “Me desiludi com a pornografia porque percebi que você não tem liberdade. É um trabalho como outro qualquer. As pessoas têm que se submeter a uma ordem”, desabafa. A demanda por filmes mais pesados com travestis e anões tiveram seu peso na decisão de se afastar da libertinagem. Valter também não gostou de ter que dirigir atores gays. A memória dos anos 70 ainda ecoa em sua mente, que acha os filmes de hoje muito “frenéticos” e “performáticos”.

Hoje Valter está mais para filósofo do que para pornógrafo. Ainda checa as novidades pela internet e os filmes que recebe em casa dos amigos do exterior. Alterna-se entre ser intérprete de empresários estrangeiros do ramo pornográfico que visitam o Brasil, algumas visitas à zona (quando tem dinheiro, o que não era o caso na semana da entrevista) e leituras complexas.

Não desistiu do cinema, porém, e já tem uma nova empreitada que “nada tem a ver com pornô”. Vai fazer um documentário sobre seu orientador, Franklin Leopoldo Silva. “Aí vou poder fazer tudo o que eu quero, usar os planos que eu quero, a iluminação, o andamento, misturar cinema chinês e japonês”, diz Valter, agora mais parecido com um Immanuel Kant e menos com um Marquês de Sade.

“Me desiludi com a pornografia porque percebi que você não tem liberdade. É um trabalho como outro qualquer."
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