Os movimentos de hoje obedecem todos ao mesmo impulso
Num protesto contra o Regime Franquista, alguém jogou sobre o asfalto um punhado de bolas de gude. O efeito das bolinhas nos cavalos da polícia foi dantesco. A cena que vi parecia a reprodução de alguma tela épica de Delacroix
Tive de correr da polícia uma única vez. Foi na primavera de 1968, na praça que existe bem em frente à Universidade de Barcelona. De um lado, estavam os estudantes, se manifestando contra a ditadura e a favor da liberdade de expressão e todas as outras coisas que uma democracia carrega junto. Do outro, “els grisos”, ou os cinzas, como era chamada a Polícia Armada, o braço repressor mais evidente do governo franquista. Os uniformes deles eram cinza e, talvez por isso, estivessem sempre dispostos a descer o porrete em quem discordasse de qualquer coisa.
Nesse dia, grande parte dos grisos estava montada a cavalo. Uma das maneiras básicas para evitar manifestações era – e ainda é – não deixar grupos grandes se formarem na rua. Nós, estudantes, caminhávamos então de três em três, no máximo quatro, até o momento em que a quantidade de pessoas fosse o equivalente ao espaço disponível para circular na praça. Era um jogo marcado e, nesse momento, quando cada pessoa dispunha de seu metro quadrado, é que as primeiras bombas de efeito moral começavam a rasgar o ar por cima das cabeças dos estudantes. Era o momento, também, em que a polícia montada carregava, a galope e em formação cerrada, contra os manifestantes. Até o mais bobo, ou mais corajoso, sabia que era então a hora de correr.
Foi o que fiz, mas antes presenciei uma cena que me deixou arrepiado. Alguém, não muito longe de mim, jogou sobre o asfalto um punhado de bolas de gude que levava nos bolsos do casaco e das calças. O efeito das bolinhas nos cavalos da polícia foi dantesco. A cena que vi, quando olhei de novo para trás e sem fôlego, depois de dar um sprint de alguns metros, parecia a reprodução de alguma tela épica de Delacroix: cavalos de pernas para o ar, policiais despencando, capacetes rolando pelo chão, volutas de gás lacrimogêneo e gente apanhando de mais policiais, à paisana. Sangue e gritos.
FIM DE UM CICLO
Eu não estudava na faculdade, nem sequer morava em Barcelona nessa época. Nesse dia tinha matado aula para assistir a um filme de arte. No metrô fiquei sabendo da manifestação. Decidi trocar o escuro do cinema pela chance de poder reclamar, em voz alta, uma liberdade que ainda demoraria anos para chegar. E como fiquei sabendo que iria acontecer uma manifestação? Não sei, não me lembro. O certo é que não existia internet, celular e os jornais estavam censurados. Mesmo assim, todos sabíamos onde e como as coisas iriam acontecer. Como? Muito simples. As pessoas se comunicavam umas com as outras da maneira como sempre foi feito: falando, interagindo. De vez em quando um panfleto mimeografado colado em alguma parede, na mão de um conhecido ou na sarjeta de uma rua dava a dica.
A internet, não se enganem, pode agilizar as comunicações entre quem se revolta – seja na primavera ou em qualquer outra estação do ano –, mas o mundo digital também está do lado de quem o controla. Os movimentos de hoje, como os de sempre, obedecem todos ao mesmo impulso: o fim de um ciclo que a necessidade de renovação – que não quer ser percebida por quem detém o poder absoluto – torna inevitável. Não há batalhões de grisos que segurem a multidão nas ruas. Com ou sem rede social.
*J. R. Duran, 59, é fotógrafo e escritor. www.twitter.com/jotaerreduran