Pendurado e de mãos atadas, senti um cano frio de ferro passando por trás de meus joelhos
Eles teriam apenas algumas horas e apostavam tudo naquilo. No corredor me vendaram, tentavam me apavorar o mais que pudessem. Senti cheiro de bicho no suor do homem que me socava o abdome. Parecia enorme e consciente do poder que possuía. Ofendia, causava um terror absoluto. As pancadas doíam mais porque eu não sabia de onde vinham, não havia como amenizar o golpe. O sujeito estava se divertindo, eu era um brinquedo. Suas ameaças se alongavam no prazer que tinha em executá-las. Batia em meus ouvidos com as duas mãos em concha. Uma dor fina e um zumbido enlouquecedor. Depois batia nas juntas dos ossos. A dor subia em ondas contínuas, efervescentes, soltando bolhinhas.
Não podiam me matar, me apegava a isso. Fora autuado em flagrante, não podia desaparecer e não havia nada ou ninguém para apelar. E lá vinha porrada no rim e no fígado. Só batiam onde realmente doía. Minha roupa foi arrancada. De mãos atadas, senti um cano frio de ferro passando por trás de meus joelhos. Erguido pelas laterais desse cano, fiquei pendurado no ar.
A venda foi então arrancada. Na minha frente, um homem alto de rosto sardento. Ao lado, outro, moreno e pesadão. Acharia ridículo, se não doesse tanto, me ver ali pendurado como um frango assado, vendo ângulos de mim que jamais havia observado. O Gordo mexeu em meu sexo. Depois no ânus. Gritei: “Aí não!”. Mas algo me preocupava mais: o que ele estava fazendo? Estiquei o pescoço e vi. Fios ligavam minha intimidade a uma maquineta. Lembrava a máquina de moer carne manual de minha mãe.
Queriam saber nomes e endereços de parceiros. “Não sairia vivo” se não contasse. E lá veio o choque. Não sei quantos volts produzia aquele dínamo, mas devia ser dos potentes. O susto me jogou para o alto., formigou o corpo. Senti minha alma sendo drenada. E lá veio outro. E outro. Veio o cheiro de carne queimada. E o tira de sardas olhando com um sorrisinho.
Entre um choque e outro, o homem perguntava: “Vai dar as coordenadas?”, sem dar tempo de responder. Queria provocar a maior intensidade de dor possível. Não sabiam nada e precisavam mostrar serviço para o delegado. Quando me deixaram falar, tentei uma história plausível. Não colou. A prancheta do tira veio na minha cara. Gritei até que me atocharam um pano com gosto de gasolina na boca. Enquanto o Gordo manipulava o dínamo para produzir eletricidade, Pintado batia nas solas de meus pés com um cassetete. Queimava, aquela coisa parecia querer entrar dentro de meu pé. Fiquei por um fio. Concentrei-me em aguentar calado, odiando com todas as forças de meu coração. Aprendera esse método apanhando de meu pai. Aparentemente, a dor diminuía.
Conforto da cela
Diante de meu silêncio, o sujeito perdeu o controle. Foi batendo na cara, na cabeça, onde pegasse. Assim era mais fácil aguentar, não havia método, era só travar os dentes. O homem enlouqueceu. Sacou a arma e dava coronhada na minha cabeça. Gritava, possesso, para que eu falasse. Engatilhava e desengatilhava o revólver em minha cara. Agora era ele quem estava por um fio.
Apelei para o último recurso. Simulei desmaio e não reagi a mais nenhum golpe. Me convenci de que estava morrendo. O moreno então empurrou seu parceiro. Silêncio. Estavam ofegantes, assustados. Logo fui colocado no chão e mãos nervosas me desamarraram. O Gordo batia em minha cara. Continuei na representação e só aos poucos fingi recobrar sentidos. Com a ajuda dos dois tiras, rapidamente fui conduzido à cela da delegacia. Deram um jeito de o delegado não me ver.
Como amei aquela cela! Escura, fria, úmida e, no entanto, não havia melhor lugar no mundo. Sentado em um colchão fedido e úmido, desfrutei do simples prazer de estar respirando. Fiz massagens nas pernas, lavei a cara quebrada e a cabeça rachada, sangrando. Estava feliz, mesmo doendo demais. Escapara mais uma vez. Estava vivo, vivo!
*Luiz Alberto Mendes, 56, é autor de Memórias de um sobrevivente, sobre os 31 anos e 10 meses que passou na prisão. Seu e-mail é lmendes@trip.com.br