Porcos de riscos

por Redação

Você já viu um inglês lavando prato?

Semana passada fui raspar a minha careca num barbeiro em Bethnal Green. Comecei a levar um lero com o barbeiro, um inglês destes com cara de ovo cozido. Ele falava um inglês quase incompreensível, com sotaque cockney, típico da classe operaria do leste de Londres - talvez o equivalente local do sotaque de paulistano da Moóca.

Percebendo que eu era estrangeiro, o barbeiro perguntou de onde eu vinha. Respondi que era brasileiro. Ele olhou pra mim com um olhar incrédulo e disse: "vocês, imigrantes, são a raça de gente mais burra do mundo". Eu gelei, pois esta zona de Londres é um renomado bastião da extrema direita que baba com ódio de imigrantes. E o cara de ovo estava raspando o meu pescoço com uma navalha! Mas o barbeiro sorriu e continuou: "Você nasceu num país lindo e ensolarado como o Brasil, o que veio fazer nesta merda de Inglaterra?".

Às vezes, acho que gosto tanto de viver aqui exatamente porque sinto uma enorme afinidade com esta refinada auto-ironia britânica, tão diferente da arrogância narcisista dos francês, argentinos e cariocas.

Com a cabeça devidamente raspada, fui ao casamento de uma amiga no countryside, num majestoso castelo medieval. Os donos destes castelos são quase sempre nobres decadentes que, não tendo mais grana para manter as propriedades, as alugam para festas da burguesia abonada, pela qual nutrem um desprezo histórico.

Os membros desta nobreza foram - e ainda são - educados para olhar para o mundo de cima para baixo, como se o império britânico ainda existisse. Eles não devem nada a ninguém. É muito comum que estes nobres tomem banho raramente e cheirem muito mal. Isso é verdade. Conheço um senhor lorde que peida deliberadamente na mesa de jantar.

Depois da cerimônia religiosa, os convidados do casamento começaram a se embebedar. Por horas, não serviram nenhum acepipe ou guloseima, sequer um amendoinzinho japonês, um tremoço ou azeitona que se preze. Só rolava bebida, de estômago vazio.

No maior pileque, o pai da noiva fez um discurso constrangedor. Lembrou que quando a filha nasceu era muito feia, como um ratazana branca. Para o pai, o casamento da filha era um enorme alívio, pois ele temia que tal bagulho nunca arranjasse um marido. Disse também que suspeitava que o genro fosse uma bicha enrustida. Discursos de casamento deste gênero fazem parte da tradição local. E os convidados aplaudiram, morrendo de rir.

Quando finalmente serviram o jantar, não fiquei nem um pouco surpreso com a péssima qualidade da comida. Às vezes, acho que foi um erro do Senhor, um desperdício divino ter dado boca para os britânicos. Bastaria um buraco para enfiar comida diretamente no estômago. Eles simplesmente não têm paladar. É como se lhes faltasse um software para apreciar comida.

Você já viu um inglês lavando prato? Eles põem a louça para secar sem enxaguar, ainda cheia de espuma e detergente. Têm uma relação difícil com água em geral. Quase todas as pias inglesas têm duas torneiras, uma só água quente a outra só fria. É impossível misturar as duas. Ou você se queima ou se congela. De bidê, então, nunca ouviram falar. Não existe ralo em casa inglesa, não existe o conceito de lavar o chão com água. Eles põem carpete até no banheiro - por isso, muitas casas têm cheiro de mijo seco surrado.

A cultura britânica é basicamente um rígido sistema de repressão de sensações, instintos e sentimentos. Quase todos os grandes nomes da literatura britânica - Shakespeare, Dickens, D.H. Lawrence e até os contemporâneos, como Hannif Kureishi e Ian McEwan - não se cansam de falar a respeito de amores não declarados, tesões recalcados e ódios disfarçados. É exatamente porque eles soterram o que sentem com tantas convenções sociais que nós latinos os consideramos frios e distantes. Esquisitos, doentes.

Eles nos vêem com um misto de admiração e desconfiança. É verdade: somos muito mais espontâneos. Mas também muito mais falsos e corruptos. No mundo latino, o ódio e o amor são uma moeda inflacionada. E porque nos os manifestamos tão facilmente, às vezes o manifestar se sobrepõe ao próprio sentimento.

Assim como os homens, as culturas são imperfeitas. Fica sempre faltando alguma coisa. Nestes dias cinzentos de inverno, às vezes me pego me perguntando: "o que será que eu estou fazendo aqui neste lugar?". Mas saio na rua. Londres não é inglesa. Tá cheio de moçada, de todas as cores, falando todas línguas. Todo mundo é estrangeiro, até os próprios ingleses são uma minoria étnica. Eu tô em casa.

E aqui nem a polícia carrega revólver.

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