Ponto de mutação

por Redação
Trip #215

O encontro do empresário Abilio Diniz com Lama Michel Rinpoche

O que acontece quando um dos empresários mais conhecidos e poderosos do país, aos 75 anos e em plena transição pessoal e profissional, se encontra com um jovem paulistano que virou monge budista aos 12 anos?

De um lado, um dos empresários mais conhecidos e discutidos do Brasil, um dos símbolos mais visíveis do capitalismo e do empreendedorismo brasileiros, construtor de um império empresarial nas décadas de 70, 80 e 90, o segundo líder empresarial mais admirado do Brasil em 2010 e 2011 conforme pesquisa da revista Carta Capital. Um homem que vive um momento de tensão e mudanças importantes ao entregar o controle das empresas fundadas por ele e sua família a um grupo estrangeiro num ruidoso processo dissecado pela mídia e cheio de percalços. De outro, um jovem paulistano saudado como a reencarnação de altíssima linhagem de um mestre do budismo tibetano, que, aos 12 anos, resolveu se mudar para um monastério na Índia para seguir os ensinamentos de seu mestre e tornar-se monge. Pois, durante duas tardes de junho e agosto, essas duas personalidades ímpares, Abilio Diniz e Michel Lens César Calmanovis (mais conhecido como lama Michel Rinpoche), estiveram frente a frente para uma troca de ideias sem travas, franca e desinteressada, na casa do empresário, em São Paulo – com participação de três de seus filhos adultos e de sua esposa, Geyze, do editor da Trip, Paulo Lima, e da mãe do lama Michel, a psicóloga Bel César.

“Acho que pelo fato de não morar no Brasil há muito tempo fui encontrá-lo sem preconceitos nem ideias preconcebidas”, lembra o religioso de 31 anos, radicado na cidade italiana de Albagnano di Bèe, a cerca de 100 quilômetros de Milão, onde cuida da Gangchen World Peace Foundation, organização não governamental fundada por seu mestre, lama Gangchen, para divulgar a cultura de paz pelo mundo. “E me deparei com um homem gentil, inteligente e disponível para falar e ouvir.”

Os dois encontros (que renderam cerca de seis horas de conversa no total) nasceram de questões que Abilio Diniz vive no momento. Em junho ele entregou o controle do Grupo Pão de Açúcar, empresa fundada pelo pai, Valentim, nos anos 1940, onde trabalhou a vida inteira e que alçou à condição de maior varejista do país, ao grupo Casino, após um ano de intensa queda de braço com os franceses. A sociedade com o Casino começou em 1999, quando Abilio buscou apoio de um investidor estrangeiro para capitalizar seu negócio. Nesse período, o grupo brasileiro cresceu, adquiriu empresas gigantes como Ponto Frio e Casas Bahia e se tornou a maior empresa de distribuição da América Latina. O processo, entretanto, foi longo, complexo e não escapou de questionamentos, entreveros e ruídos. Hoje, Abilio permanece como presidente do conselho de administração, mas com poderes limitados.

Mas não são apenas as questões profissionais que mobilizam o executivo. Aos 75 anos, e pai de seis filhos (dois deles ainda pequenos, Miguel, 2 anos, e Rafaela, 5, frutos de seu casamento com a economista Geyze Marchesi), Abilio tem pensado mais na vida. E na morte. “Nosso encontro nasceu, entre outras razões, porque venho tentando entender o que existe depois da morte”, diz em certo momento da conversa que você vai ler a seguir. Lama Michel devolve: “No budismo acreditamos que não precisamos deixar a vida de lado para nos preparar para a morte. Ao contrário, a melhor preparação para a morte é viver bem a vida”.

Abilio Diniz – Me explica o que é, como vive um lama.
Lama Michel Rinpoche – Lama é a tradução tibetana da palavra em sânscrito que significa guru, aquele que tem a responsabilidade de aprender, praticar e transmitir um caminho espiritual para outras pessoas. No budismo tibetano, um lama pode ou não ser um monge. Não é uma obrigação.

Você é um monge? Qual a diferença?
Sim, sou um monge budista. Monge é alguém que faz uma escolha pessoal, que tem votos básicos de não matar, não roubar, não mentir, não tomar substâncias que tirem a clareza da mente, como álcool e drogas, e não ter relações sexuais. Para se tornar lama é preciso ser reconhecido como a reencarnação de um mestre, que foi o meu caso, ou então conquistar discípulos ao longo do tempo, ensiná-los, guiá-los e exercer aquele papel, até ser reconhecido como tal. Há vários lamas que são casados, têm família, e outros que seguem uma vida monástica.

Você vive em um monastério?
Vivi 12 anos em um mosteiro. Hoje eu vivo numa casa, junto com meu mestre [lama Gangchen Rinpoche, 72 anos]. Existe com ele uma relação não só de respeito, mas de serviço, de ajudá-lo no que for preciso. É um pouco o caminho do meio. Não é a vida no monastério, e não é uma vida “normal” de uma família. Mas a qualquer momento o monge pode deixar de ser monge. Só não pode, depois, voltar a ser. Quando escolhe deixar, ele deixa. Mas pode continuar a ensinar, ter uma vida dedicada, como já ocorreu várias vezes.

Você mora onde?
Vivo na Itália há seis anos. Morei na Índia por 12 anos, mas todo ano vou ao Tibete para estudar. Na Itália não moro em um monastério, porque um monastério é uma estrutura só para monges... Veja, durante séculos o budismo se desenvolveu por meio da comunidade monástica e os leigos aprendiam relativamente pouco. Hoje em dia, no Ocidente, pela primeira vez o budismo chega para leigos e não exclusivamente para monges.

 

“Viver apenas para me sustentar materialmente nunca fez muito sentido. Meu objetivo de vida é encontrar um estado de equilíbrio, de alegria, de felicidade e satisfação que não dependa da situação”

 

Esse nosso encontro nasceu, entre outras coisas, porque tenho estudado sobre o que existe após a morte. O que você entende por vida depois da morte?
Bem, para entender o que é a morte, temos de entender do que somos feitos durante a vida. No budismo acreditamos em três níveis de existência: corpo e mente grosseiros, sutis e muito sutis. O nível grosseiro é aquele que estudamos em anatomia; o sutil é o das emoções; e com o muito sutil não entramos em contato durante a vida. Para fazer uma transformação verdadeiramente profunda e efetiva, que se leva de uma vida para outra, é importante entrar em um estado de consciência mais profundo, ou seja, nesse nível que chamamos de muito sutil. E isso só é possível no momento da morte. É por isso que, dentro do budismo, se preparar para esse momento é essencial. Infelizmente no Ocidente a morte é ainda um tabu, mas todos nós deveríamos ser educados em relação a ela desde a infância. Porque é importante saber usar aquele momento de uma boa forma e se direcionar. Acreditamos que na hora da morte a mente grosseira é absorvida pela mente sutil. Nossa mente sutil é um resultado de todas as experiências que a gente viveu até hoje. Essa mente também vai se dissolver e vamos entrar num estado de consciência ainda mais profundo. É muito importante o momento em que a mente grosseira for absorvida pela mente sutil e a mente sutil absorvida pela mente muito sutil, o último pensamento grosseiro é o que vai determinar a direção em que isso vai ocorrer.

Então a forma como morremos é mais determinante nessa passagem do que a forma como vivemos?
As duas coisas são importantes. Durante a vida eu crio as causas, no momento da morte eu crio a condição. O resultado vem da união de causa e condição. Durante a vida posso ter criado várias causas positivas, outras negativas. O que acontece no momento da morte não é um balanço final, mas, entre minhas várias causas, vou ver qual acionar. Se eu morrer com uma mente de raiva, ódio, inveja, medo, isso vai direcionar pra um estado emocional negativo. Vai fazer com que causas não positivas que eu criei amadureçam, e vou me direcionar pra uma continuidade de um renascimento não bom.

Costumo brincar em minhas palestras que aos 75 anos de idade prefiro acreditar que sou eterno, porque se ficar pensando na morte minha vida perde um pouco a graça. Eu olho para minha mulher, paras minhas crianças pequenas... Não é que a morte seja um tabu para mim, mas eu gostaria de encontrar algo que me tranquilizasse um pouco mais em relação a essa perda.
Bel Cesar – Os lamas falam que, mesmo que a gente tenha pouco tempo pela frente, devemos ter planos para 100 anos de vida. No budismo acreditamos que não há esse “plano de carreira” no qual você precisa diminuir no final. Ao contrário, a melhor preparação para a morte é viver bem a vida. E a melhor lição que se deixa para quem fica é mostrar que é possível lidar com a morte de forma positiva. São truques que a gente vai encontrando para acalmar a mente, mas trabalho há quase 20 anos com pacientes terminais e, no fundo, continuo achando muito esquisito morrer [risos].

 

"Os novos desempregados da Europa são fruto de duas gerações que fizeram de tudo para educá-los e não deixar que nada lhes faltasse. É uma geração sem compromisso, que nunca precisou se esforçar para nada”

 

Ana Diniz (a filha mais velha do empresário esteve num dos encontros) – Cada vez mais eu acredito que exista um “masterplan” que precisamos seguir e cumprir. Às vezes, mesmo que o indivíduo tenha as melhores intenções, não consegue interferir nessa espécie de destino que está desenhado para ele. Você acredita nisso?
Acredito no que chamamos de interdependência profunda. Por exemplo, estamos hoje aqui, reunidos. Quantas foram as causas e condições necessárias pra que esse momento pudesse existir? Infinitas! A gente vê o quanto a realidade é delicada. Basta pouco pra que a coisa seja diferente. Por outro lado, isso mostra que não temos o verdadeiro controle sobre o que vai acontecer. A gente tem uma influência, mas não o controle. Causas que se acumulam ao longo do tempo, e falta só a condição para que aquele resultado apareça. São ações. A gente não tem a capacidade de viver o presente estando desligado do passado. Hoje aconteceu isso por causa disso e daquilo. Não é verdade. Se olharmos bem, aquilo que ocorre hoje foi gerado lá atrás. Na verdade, nós mesmos acabamos gerando e chamando certas situações para lidar com nossos aspectos internos. E, enquanto a gente não fizer uma transformação interna, aquela situação vai se repetir em nossa vida. Certa vez, fui procurado por uma moça com dificuldades profissionais, ela dizia que ninguém a reconhecia no trabalho. Perguntei se ela havia experimentado aquele mesmo sentimento em algum outro momento da vida. “Desde que me entendo por gente” foi a resposta. Ou seja, no caso, o problema não estava no trabalho, mas em seu interior, e enquanto não for resolvido vai se repetir pela vida dela.

Imagine uma pessoa extraordinariamente rica – não falo só dos bens materiais, mas de amor, filhos, casamento, enfim, todas as coisas maravilhosas e plenas da vida. Por mais incrível que seja essa transformação, é difícil imaginar que ela conduza a algo superior àquilo que a pessoa já vive. E, quando houver essa transformação, pelo que você está dizendo, não existe nenhum link com o que ficou pra trás.
O link existe, o que não existe é resultado sem causa. Quando você cria um vínculo profundo com uma pessoa, esse vínculo continua de uma vida pra outra, não de forma racional, mas num nível mais sutil. A morte é uma perda? Sim, é uma perda porque nossa existência é baseada no que a gente tem, no que a gente é aqui, nesta vida. Qual é o processo de preparação pra que a morte não seja uma perda? A gente cita três níveis diante da morte pra um praticante espiritual. O primeiro nível é não ter arrependimentos diante da própria morte. Eu fiz coisas erradas, mas eu reconheci, me arrependi do que eu fiz, fiz algo pra mudar, segui a minha vida com coerência dentro de mim no meu dia a dia. Não tenho contas a pagar. Esse primeiro nível é muito importante porque, não sabendo nunca quando a morte vai chegar, tenho que todo dia estar em paz, tudo no lugar. O segundo nível é não ter medo da morte. Para isso é um processo longo. Nós temos nossa identidade, que é baseada principalmente no nosso corpo, nosso nome, coisas que possuímos, sejam bens materiais, pessoas, posições. Na morte, tudo isso se perde, tudo que posso ter acumulado nessa vida eu não levo comigo, mas com as pessoas que estão à minha volta eu crio um vínculo profundo. E por isso vai continuar. Para não ter medo diante da morte, devo cultivar uma identidade que vá além da imagem, além das pessoas à minha volta, além daquilo que eu sou ou possuo nesta vida. Isso é um dos processos mais importantes que existem no caminho espiritual. É um processo longo, gradual.

Você mora na Itália, que passa por uma grave crise, com muito desemprego. Como budista, o que você pensa que se possa fazer no campo econômico? O que fazer com esses jovens que estão sofrendo, desempregados, para que tenham uma dimensão diferente?
O problema é bem complexo. Tenho observado bastante. Grande parte desses jovens europeus cresceu sendo muito mimada. Nunca passaram por dificuldade de verdade, nunca foram colocados à prova. Tenho amigos empresários que têm dificuldade em contratar gente mais jovem. Dizem que os caras não se esforçam. Por outro lado, conheço muitos jovens que não querem correr atrás. Estão sobrevivendo, não ambicionam grandes coisas, se acomodam e deixam a vida passar. O fato é que, quando uma pessoa nunca passou por uma situação de ter que se esforçar para sobreviver, nunca enfrentou dificuldades, nunca dependeu das próprias pernas, ela acaba se acomodando às situações a sua volta. Esse problema existe na Europa. A nova geração de desempregados nasceu dos filhos dos filhos do pós-guerra. Duas gerações que fizeram de tudo para educar e não deixar faltar nada aos filhos resultaram numa geração que nunca precisou fazer esforço algum. Uma das coisas mais importantes do ponto de vista espiritual é mostrar para as pessoas que a vida não é feita apenas de bens materiais – em outras palavras, a vida é mais do que resolver problemas e encontrar prazeres. Mas as pessoas passam a vida entre essas duas coisas: evitam o sofrimento e procuram o prazer. E quem nunca enfrentou dificuldades se frustra por não encontrar o prazer que gostaria. E essa busca por prazer é um grande problema, porque é algo que não acaba nunca. Cada vez que a gente bate a cara, tem que aprender alguma coisa. Por que eu estou batendo a cara? Não é porque alguém fez algo contra mim. Tento levar essa consciência para pessoas com quem converso. Só que observo nessa geração um discurso de que o mundo não lhes dá oportunidade de trabalho. Acham que tudo deve ser dado a eles, mas, do outro lado, não acham que devam manter nenhum compromisso. Seria muito melhor parar de se perguntarem o que o mundo deve dar e, perguntarem o que eles podem dar ao mundo. Isso mudaria bastante a situação. Falta trabalho, mas também falta quem queira trabalhar com compromisso. Se estamos vivendo isso hoje a responsabilidade é de todos nós. Temos o hábito de colocar toda a culpa nos políticos. É preciso recuperar a força de vontade de dizer “minha vida depende de mim mesmo”. Me vem à mente agora uma amiga professora que deveria estar aposentada, mas lhe tiraram o benefício e ela continua trabalhando... Mas, entre os jovens, sinto uma estagnação.

 

"Recentemente, disse em uma entrevista que, se for para alguém eleger um único objetivo na vida, meu conselho é: escolha ser feliz. coloque isso como meta e o resto se ajusta depois”

 

Concordo com você, também sinto a falta de ambição dos jovens. Mas que tipo de valores podemos passar? O carinho, o abraço que nós vemos quando vamos à missa aqui na igreja São José, por exemplo, é cada vez mais raro. A igreja católica perde cada vez mais fiéis para crenças criadas em cima do marketing. Na Europa, nem isso, as igrejas estão vazias, e a religião é só um dado estatístico. Que mensagem podemos passar num cenário assim?
Uma coisa é passar um valor pra uma pessoa ou um grupo. Em Milão, temos o centro onde recebo pessoas toda semana e falo sobre valores. Uma média de 50 a 80 pessoas que vêm, de todas as classes sociais e idades. Poderíamos também colocar na internet ou falar na TV, mas ainda assim seria algo restrito. Então, como chegar nas pessoas? A grande dificuldade é que depende muito delas, da receptividade. Se a pessoa não está aberta, ela não recebe, não importa o que você leve. Acho que a espiritualidade faz muita falta, independentemente da religião. Sou a favor de qualquer religião, mas, em relação a alguns cultos, percebo que muitas vezes eles atraem as pessoas com objetivos completamente mundanos: uma casa, um carro. Estão longe de um caminho espiritual. Agora, como levar espiritualidade real para as pessoas? É um processo nada fácil. A consciência de um processo de desenvolvimento interior independente da realidade material à nossa volta é um luxo, no mundo de hoje. Mesmo onde isso é mais difundido, na Ásia, ela está se perdendo, devagarzinho, dando lugar ao materialismo. O que eu faço é levar aquilo em que acredito aonde quer que eu vá. E ajudar alguém a mudar a própria vida: em vez de viver uma vida materialista, ver que existe algo mais, um processo interior, algo impossível de transmitir de maneira unicamente verbal. Só se transmite olhando nos olhos. Então, o que tento fazer é estar perto do maior número de pessoas, levar isso a elas, e vejo que, devagarzinho, um pouquinho vai sendo feito. Por meio das pessoas, uma por vez, uma vai influenciando a outra, e dessa forma a gente pode chegar lá.

Mas qual a referência? Até certo tempo atrás, era a religião. Hoje vejo o jovem quase no mundo todo sem referência nenhuma.
Acredito que algumas coisas bem práticas e diretas possam ser feitas. Pra que eu possa ter um objetivo, é importante ter uma amostra desse objetivo. Experimentar, ter uma sensação. O meu sonho é que a meditação fizesse parte da educação como um todo. Não precisa ser a meditação budista. A meditação como exercício de autoconsciência. Falta hoje a pessoa parar, respirar e olhar dentro de si mesma. Ajudaria muito, existem centenas de estudos que provam isso. É um sonho, acho que um dia a gente chega lá.

Paulo Lima – As coisas mais fundamentais não nos são ensinadas. Veja o quanto nos faz falta aprender sobre nutrição, por exemplo, e o quanto somos ignorantes no assunto.
Com certeza. Nós fazemos uma coisa supersimples com um grupo aqui em São Paulo, numa instituição chamada Cursinho da Poli. Eles dão preparação pré-vestibular para pessoas de baixa renda. E há quatro anos nós vamos até lá para fazer uma meditação de 15 minutos antes dos simulados. Chamamos de “técnica de relaxamento e concentração” porque tem gente que acha que meditação é coisa do diabo [risos], mas é a mesma coisa, idêntica, é sentar, respirar, observar. E tem melhorado os resultados das provas, em vários casos a pessoa começa a observar mais a própria atitude. É levar junto com a meditação um processo de educação emocional. Acho que é isso que o budismo traz e que poucas escolas ensinam, que podemos nos educar emocionalmente. Posso me educar a ser uma pessoa mais paciente, amorosa, e assim por diante.

 

"Costumo brincar em minhas palestras que, aos 75 anos, prefiro pensar que sou imortal. Não é que a morte seja um tabu, mas é difícil lidar com a sensação de perda que ela traz”

 

Toda manhã faço meus exercícios aeróbicos. Começo às seis da manhã e vou até as sete, e nunca acendo a luz. Essa é minha hora de meditação e de prece. Converso com Deus, sou bem amigo dele, sou um pedinte danado [risos]. Eu até chamo esse momento de meditação. Mas me explica o que é meditação no budismo.
A palavra em tibetano para meditação é gom, que, literalmente, significa se familiarizar, acostumar. A meditação tem alguns pré-requisitos, mas o conceito básico é gerar um estado mental que vai se opor a um outro estado mental que eu quero eliminar. Se eu quero eliminar a raiva, tenho que desenvolver mais paciência e amor. Gerar esse sentimento “artificial”, senti-lo, quanto mais eu fizer isso, mais forte esse sentimento vai surgir de forma espontânea. O primeiro passo é estar presente no momento presente. Tirar da mente preocupações do passado e expectativas do futuro. E aprendemos a fazer isso através da respiração. Porque a respiração é a parte do nosso corpo que cria a ponte entre o mundo externo e o mundo interno. A respiração é como se fosse o maestro da orquestra do corpo e da mente. Se a gente tenta respirar rápido e pensar devagar, não dá certo, nem o contrário. Dizer que meditar é pensar em nada não é correto. Existem linhas que têm essa visão, eu não acredito nisso, toda linhagem que eu sigo diz que faz parte da natureza da mente ter um objeto de percepção, então no momento que tento pensar em nada o nada se torna algo. Não posso simplesmente esvaziar a mente de qualquer pensamento. Posso meditar de várias formas. Uma das primeiras meditações que a gente aprende, por exemplo, é sobre a preciosidade desta vida. Primeiro faço uma meditação analítica, observando quanto eu tenho oportunidades raras, corpo em boa saúde, oportunidade de seguir um caminho espiritual, poder fazer algo pra ajudar as outras pessoas e quanto isso é raro no planeta. Nós somos 7 bilhões. Fazemos parte de várias categorias privilegiadas, aqueles que têm o que comer, onde viver, não vivem em guerra e assim por diante, vai indo até chegar no quanto essa vida é preciosa. E ela é preciosa porque me dá oportunidade de ter um desenvolvimento interior e poder beneficiar os outros. Vou refletir sobre algo que talvez eu já conheça, já tenha ouvido falar várias vezes, eu mesmo já tenha explicado. Refletindo sobre isso, fazendo uma análise, até que eu chegue numa conclusão final. Aí, quando fico nela, é uma meditação unidirecionada. Até chegar nela é a meditação analítica. Mas o primeiro passo é saber estar presente no momento presente. O objetivo da meditação é falar pra mente “mente, fica aqui”. E ela fica, até eu falar pra mudar de lugar. O que acontece geralmente é você dizer pra ela ficar aqui, mas, quando olha pro lado, ela já saiu [risos].

Aprendi coisas interessantes com o que você está dizendo. Estar inteiro no momento presente faz muito sentido. Vou tentar meditar do meu jeito.
Há alguns anos, a prefeitura me pediu para falar com os chefes das torcidas organizadas aqui em São Paulo, no Museu do Futebol. Eu gosto de esporte, mas nunca entendi como alguém pode torcer para um time [risos]. Eu tinha que achar algum vínculo com eles. Estar “presente no momento presente” eu defini como quando você está jogando futebol, a bola tá no pé, indo em direção ao gol; se a mente vai pra outro lugar, você perde a bola. Durante o nosso dia a dia é muito importante ter momentos nos quais a gente está presente no momento presente, livre de preocupações e pensamentos relativos ao passado e ao futuro porque, entre outras coisas, é um momento pra decantar e elaborar nossas emoções.

Quando existe uma disputa e cada um olha o fato com uma interpretação diferente, como resolver?
A primeira coisa é entender como o outro vê aquilo. Segundo, mostrar para o outro o meu ponto de vista, usando a linguagem e o ponto de vista do outro. Quando há conflito entre duas visões completamente diferentes, se eu continuo pensando “o meu jeito é assim”, se eu uso a minha linguagem e o outro usa a linguagem dele, o conflito só aumenta. Eu vou ter a vitória quando dou a vitória para o outro, quando eu encontrar uma visão possível, compartilhada, na qual eu chego ao meu objetivo e o outro entende que alcançou a vitória. Se minha posição é correta, e eu estou confortável com minha posição, eu levo em consideração o outro e levo essa posição ao outro. E, se o outro está também com a motivação correta, podemos encontrar um caminho do meio.

 

"Posso meditar de várias formas. Começo com uma meditação analítica, observando quanto temos oportunidades raras, corpo em boa saúde, temos o que comer, onde viver, não estamos em uma região de conflito”

 

E se o outro não está com a motivação correta?
Tenho que, de alguma forma, encontrar um jeito de revirar, para que ele sinta, na escolha que é boa para mim, que também pode ser boa para ele. E para isso tenho que saber falar a linguagem dele. Entender a mentalidade dele. Então tem uma prática budista que diz que a forma mais sábia é ganhar a vitória oferecendo a vitória. É um debate. Mas qual a dificuldade num debate? Se a pessoa que está do outro lado não tem sinceridade intelectual, fica difícil. Ela vai criar mil coisas, vai dizer o absurdo pra não perder a posição.

Outra coisa também é se a pessoa do outro lado não pode revisitar a posição dela. Nesse diálogo ela própria pode se dar conta de que está errada.
Você leva ela a isso. Em vez de dizer “você está errado” eu digo “me explique de que forma eu estou errado”. Me mostre qual é o caminho. Sempre me lembro do advogado do filme Filadélfia, que dizia: “Agora me explique como se eu fosse uma criança de 4 anos”. Muitas vezes ela percebe que não consegue justificar sua posição. Nesses conflitos é importante saber jogar. A arrogância de cada um só penaliza.

Paulo Lima – Interessante o que você falou, perder para ganhar...
Dar a vitória...

 

"O que eu faço é levar aquilo em que acredito aonde quer que eu vá, e transmitir isso olhando nos olhos. Estando perto das pessoas, uma por vez, devagarinho, uma vai influenciando a outra”

 

Paulo Lima – Essa é uma lógica que não está instalada definitivamente, mas que começa a aparecer no mundo dos negócios ainda de forma embrionária. Não está na lógica corporativa ainda. Mas, quando você começa a ver as negociações realmente importantes da atualidade, se elas não partirem desse princípio... Por exemplo, quanto aos conflitos Israel X Palestina, a única possibilidade de haver alguma vitória é que os dois consigam perder algo, que abram mão de coisas muito fundamentais. Se não, esquece, é confrontação, explosão, mortes sem fim.
Isso está dentro do conceito de dar a vitória, mas entendendo que dando a vitória você não perde. Você tem a maior vitória. Quem entra no conceito de ir à luta, destruir, fazer o outro perder, no final das contas, acaba ele próprio não ganhando.

Você nunca teve dúvidas em relação à trajetória que escolheu?
Nunca. Eu era um garoto de classe média alta que gostava de fazer as coisas normais da minha idade, como jogar videogame, quando, aos 12 anos, resolvi ir morar em um monastério no sul da Índia, em uma situação de pobreza material. Comia arroz com lentilha e mais nada, simplicidade total. E a vida no monastério não é o paraíso, o ser humano é igual em todo lugar. Mas isso nunca foi problema, porque tudo fazia muito sentido para mim. Aos 11 anos comecei a questionar o que estava fazendo. Afinal, para que estudar matemática, geografia, ciências? Talvez hoje eu tivesse uma resposta diferente, mas na época a razão era entrar na faculdade, me formar e conseguir um emprego de que gostasse e com o qual ganhasse bem. Ao mesmo tempo, nas reuniões de família ouvia os adultos, todos bem-sucedidos financeiramente, reclamando bastante da vida. Quando estava com meu mestre o via sempre feliz, satisfeito, equilibrado, e pensava: “Eu quero ser assim”. No meu caso, viver apenas para me sustentar materialmente nunca fez muito sentido. Meu objetivo de vida é encontrar um estado de equilíbrio, de alegria, de felicidade, de satisfação, que seja completamente independente do lugar, da companhia e da situação em que esteja.

Ou seja, não depender das coisas para ser feliz. Eu me identifico muito com isso. Recentemente disse em uma entrevista que, se for para alguém eleger uma única coisa na vida, um só objetivo, meu conselho é: escolha ser feliz. Coloque isso como meta e aposte tudo no caminho da felicidade, o resto se ajusta depois.
Não tenho nada contra ganhar dinheiro, alcançar uma posição de destaque, ter prazer sensorial. Isso faz parte da vida. O problema é ser escravo disso. Certa vez fui convidado para falar sobre budismo para crianças de uma escola primária de Milão. Perguntei se elas já haviam conseguido ganhar o presente que pediram no Natal ou no aniversário. Todas responderam que sim, mas também disseram que a felicidade tinha durado pouco e elas já sonhavam com outro brinquedo. Todos nós sabemos disso. É como se a gente não conhecesse outra brincadeira e ficasse apenas trocando de brinquedo. Para mim felicidade é aquele momento em que não desejo que nada seja diferente daquilo que é.

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