Filósofo carioca dá um tempo nos versos e vai à luta
por Ronaldo Bressane
fotos Christian Gaul
O poeta-filósofo Alberto Pucheu, 35, peso-médio, 1,82 m e 77 kg, autor de Ecometria do Silêncio (7Letras, www.7letras.com.br) e A Vida é Assim (Azougue, www.azougue.com), explica o que têm em comum versos e diretos, temas de seu próximo livro (leia, na seqüência, três poemas inéditos de Pucheu)
TRIP Literatura e boxe têm a ver?
PUCHEU Muito: a preparação infinda, a radicalidade de uma entrega gratuita, a intensidade do instante criativo, a possibilidade do fracasso, a lida com o acaso e a espessura do real se manifestando por todos os cantos. Quase sempre, boxeadores e poetas exercem seu ofício por puro amor e necessidade, tendo que compartilhá-lo com a luta pelo sustento.
TRIP Quem são o Marciano, o Tyson e o Ali da poesia brasileira?
PUCHEU O Tyson seria o Oswald de Andrade, que, para mudar o pensamento poético brasileiro, saiu derrubando tudo. O Marciano (49 lutas-49 vitórias) poderia ser João Cabral, um dos raríssimos poetas que só escreveram poemas excelentes. O Ali, com sua dança, capacidade de absorção, inteligência privilegiada no ringue e com as palavras, além da pancada (um lutador completo), seria o Drummond.
TRIP Fora você, quem tem cruzado os dois assuntos?
PUCHEU Acabei de ler uma bela biografia do Eder Jofre, de Henrique Matteucci. Se lemos A Luta, de Norman Mailer, sobre o confronto entre Ali e Foreman no Zaire, descobrimos um livro excelente, assim como O Boxe, de Joyce Carol Oates, e os contos de Cortázar, Piglia, Hemingway e Jack London sobre o assunto. E Miguel Rio Branco, fotógrafo, fez um belíssimo ensaio, fotografando locais de treino das periferias
TRIP Um soco no nariz pode ter o impacto de um verso? Se sim, teve algum que te derrubou?
PUCHEU Se já fui derrubado por um soco no nariz? No exato lugar, entre o nariz e o olho. São, literalmente, os ossos do ofício. Mas eu, que busco uma poesia com pegada, costumo me perguntar: pode um verso ter o impacto de um soco? Claro. Uma boa linha tem a força de mudar uma vida. No meu caso, não foi uma linha, mas um livro (o Assim Falou Zaratustra, do Nietzsche). Você não tem como ficar imune a versos como Qualquer que seja a chuva desses campos/ devemos esperar pelos estios, ou então, há sempre um copo de mar/ para um homem navegar, ambos de Jorge de Lima; você não tem como manter a guarda levantada para livros como Notas do Subterrâneo, de Dostoiévski ou Fome, de Knut Hamsum, entre outros. Mas os da literatura, são socos que, ao invés de nos derrubarem, nos revitalizam.
TRIP Que tipo de poeta você queria jogar na lona?
PUCHEU Os que, deixando de lutar poeticamente, fazem mil tramóias para se manter de pé.
TRIP Falta pegada à poesia brasileira atual?
PUCHEU A poesia atual é de uma grande fecundidade. Gullar, Manoel de Barros, Leonardo Fróes, Fernando Ferreira de Loanda (de Kuala Lumpur), Vicente Cecim e outros, cada um a sua maneira, têm uma pegada fortíssima. Se pensarmos esse atual como pessoas que começaram a publicar mais recentemente, digamos, nos anos 90, tem poetas também com ótima pegada, como Caio Meira, Antonio Cicero, Fabrício Carpinejar e Sérgio Nazar, só para citar alguns. Por outro lado, há poetas que, apesar de escreverem bem, fazem com que a erudição e a assepsia exageradas queiram submeter as manifestações das múltiplas intensidades da vida, da linguagem, do pensamento. Um dia, escutei um cara no ônibus, possivelmente um D.J., falando assim: Não deixe que a cultura abafe a realidade!
TRIP O que escolhe: uma luta clandestina do Tyson ou um livro inédito do Pessoa?
PUCHEU Pego o livro e vou à luta.
AS MINHAS AMIZADES DE HOJE SÃO FEITAS COMO ANTIGAMENTE
Estudantes engravatados tomam um chope num botequim do centro da cidade, ao lado do qual se abre, imperceptível, uma porta. As pernas que, por ela, sobem as escadas de madeira pela primeira vez não sabem ao certo o que irão encontrar; algo as move, entretanto, naquela direção: em certos casos, um excesso, em outros, uma ausência. Seus freqüentadores se acostumaram ao fato de que poucos visitantes permanecem entre eles, e não têm expectativas de que seja diferente. De tão velho, o corrimão se afasta de quem quer que se apóie nele. O neófito se recompõe rapidamente. A primeira lição: para entrar ali, conte apenas com sua própria força, mais nada. Pois músculos suados se esquentam, se esbarram, se agridem e se separam em busca do equilíbrio perfeito entre velocidade, potência e inteligência dos reflexos. O menor vacilo custa alguns dentes, um filete de sangue no nariz, uma dor no fígado, no baço, uma falta de ar... e de siso. Pouco falam do que pensam ou sentem. O conhecimento que um tem do outro é passado pelos poros, pelos suores que se misturam a cada esquiva mútua em que a lateral de um corpo se esfrega na mesma lateral malcheirosa do corpo alheio, pela velocidade dos jabs e dos tapas defensivos tirando o punho do caminho da face, pela porrada do explodir da luva nos músculos compactos e protetores. Sim, é dessa maneira que hoje faço meus amigos.
A VOZ DO SANGUE, O SANGUE DA VOZ
Tanto silêncio no ringue, no ringuee na fome, tanto burburinho zoando simultaneamente, que não posso distingui-los. E mesmo antes dos golpes na cabeça, e mesmo antes de qualquer golpe revolvendo as entranhas pelo avesso antes dos 4.500 quilos por impacto), e, mesmo antes, tanto silêncio no ringue, no ringue e na fome, tanto burburinho zoando simultaneamente, que não posso distingui-los.
O ringue é o ringue, a fome é a fome, mas no ringue(como na fome, como na fome do ringue, como no ringue da fome), o silêncio é silêncio e burburinho, e o burburinho, burburinho e silêncio. Quando, no canto do amparo - sentado, curativos imediatos, os segundos trabalhando a meu favor, a respiração em busca de um ponto pacífico -, ouço a voz nítida do treinador se erguendo do alarido da multidão e de ninguém, não a escuto como um mandamento: infiel e pecador, poderia trai-la. Escuto essa vozdesenrolar as últimas ataduras que envolvem o punho do meu coração, espremê-lo ao sumo, ao ponto de o gosto do sangue (de o gosto da fome) brotar espremendo as gengivas por entre os dentes e o protetor, me dando a certeza de que o próximo soar do gongo será o último badalo com o qual meu adversário sonhará antes de beijar a encardida lápide da lona.
ARRANJO PARA ESSES CAMPEÕES DA PALAVRA
Não posso ser poeta, não sei contar histórias... Se eu fosse um toureiro, faria o público acreditar que eu estava a poucos centímetros da morte, mas manteria minha margem de segurança. Foi o que fiz no ringue. Nós, lutadores, compreendemos as mentiras. O que é uma simulação? O que é pensar uma coisa e fazer outra? Os melhores garotos são aqueles que até podem tomar um murro na cara, mas são inteligentes o bastante para não o querer. Quando soa o gongo, somos apenas duas solidões. Não temos medo de apanhar, mas temos medo de perder. Uma derrota no ringue não se compara a nenhuma outra. Eu combatia com qualquer um. Não me interessava quem eram. Era simplesmente indiferente para mim. Eles me batiam, eu não me importava. Quando estou no ringue, luto pela minha vida. A luta pela sobrevivência é a única luta. Por cinco dólares, eles podiam me golpear no queixo com uma marreta. Quem já ficou dois dias sem comer poderá entender. E comer é um vício difícil de largar. Quando se luta, se luta por uma coisa: dinheiro. Acho que o campeão que eu sou hoje é pela dificuldade que eu passei. Nunca fui nocauteado. Já estive inconsciente, mas sempre de pé. Detesto afirmar isso, mas é verdade: quando começa a doer, é quando eu mais gosto desse negócio. Quando vejo sangue, fico como um touro. Sou um animal selvagem, inimigo declarado de toda a raça humana. Uns dizem que sou arrogante, outros, que preciso de uma boa surra, e outros, que falo muito. Mas eu garanto o que digo. Eu não quero nocautear meu adversário... quero golpeá-lo, me afastar e vê-lo ferido. Quero o seu coração. Ele pode fugir, mas não pode se esconder. Tento acertar na ponta do nariz do meu adversário porque tento lhe enfiar o osso no cérebro. Se abrirem minha careca, vão encontrar uma grande luva de boxe. É tudo o que sou. É disso que vivo. Celebridade? Eu? O pessoal lá de onde venho diz que eu sou um vagabundo sortudo que sabe dar uns socos. Quando você não é mais o campeão, está sozinho. Alguns ficam insanos, outros começam a beber, pois o boxe é muito intenso, e muita gente se perde. Você agüenta até certo ponto, depois quebra. Tenho tudo de que preciso: o médico mora aí em frente, o farmacêutico trabalha na esquina; daqui, posso ver a câmara-ardente, e o cemitério é logo ali embaixo na rua.
fotos Christian Gaul
O poeta-filósofo Alberto Pucheu, 35, peso-médio, 1,82 m e 77 kg, autor de Ecometria do Silêncio (7Letras, www.7letras.com.br) e A Vida é Assim (Azougue, www.azougue.com), explica o que têm em comum versos e diretos, temas de seu próximo livro (leia, na seqüência, três poemas inéditos de Pucheu)
TRIP Literatura e boxe têm a ver?
PUCHEU Muito: a preparação infinda, a radicalidade de uma entrega gratuita, a intensidade do instante criativo, a possibilidade do fracasso, a lida com o acaso e a espessura do real se manifestando por todos os cantos. Quase sempre, boxeadores e poetas exercem seu ofício por puro amor e necessidade, tendo que compartilhá-lo com a luta pelo sustento.
TRIP Quem são o Marciano, o Tyson e o Ali da poesia brasileira?
PUCHEU O Tyson seria o Oswald de Andrade, que, para mudar o pensamento poético brasileiro, saiu derrubando tudo. O Marciano (49 lutas-49 vitórias) poderia ser João Cabral, um dos raríssimos poetas que só escreveram poemas excelentes. O Ali, com sua dança, capacidade de absorção, inteligência privilegiada no ringue e com as palavras, além da pancada (um lutador completo), seria o Drummond.
TRIP Fora você, quem tem cruzado os dois assuntos?
PUCHEU Acabei de ler uma bela biografia do Eder Jofre, de Henrique Matteucci. Se lemos A Luta, de Norman Mailer, sobre o confronto entre Ali e Foreman no Zaire, descobrimos um livro excelente, assim como O Boxe, de Joyce Carol Oates, e os contos de Cortázar, Piglia, Hemingway e Jack London sobre o assunto. E Miguel Rio Branco, fotógrafo, fez um belíssimo ensaio, fotografando locais de treino das periferias
TRIP Um soco no nariz pode ter o impacto de um verso? Se sim, teve algum que te derrubou?
PUCHEU Se já fui derrubado por um soco no nariz? No exato lugar, entre o nariz e o olho. São, literalmente, os ossos do ofício. Mas eu, que busco uma poesia com pegada, costumo me perguntar: pode um verso ter o impacto de um soco? Claro. Uma boa linha tem a força de mudar uma vida. No meu caso, não foi uma linha, mas um livro (o Assim Falou Zaratustra, do Nietzsche). Você não tem como ficar imune a versos como Qualquer que seja a chuva desses campos/ devemos esperar pelos estios, ou então, há sempre um copo de mar/ para um homem navegar, ambos de Jorge de Lima; você não tem como manter a guarda levantada para livros como Notas do Subterrâneo, de Dostoiévski ou Fome, de Knut Hamsum, entre outros. Mas os da literatura, são socos que, ao invés de nos derrubarem, nos revitalizam.
TRIP Que tipo de poeta você queria jogar na lona?
PUCHEU Os que, deixando de lutar poeticamente, fazem mil tramóias para se manter de pé.
TRIP Falta pegada à poesia brasileira atual?
PUCHEU A poesia atual é de uma grande fecundidade. Gullar, Manoel de Barros, Leonardo Fróes, Fernando Ferreira de Loanda (de Kuala Lumpur), Vicente Cecim e outros, cada um a sua maneira, têm uma pegada fortíssima. Se pensarmos esse atual como pessoas que começaram a publicar mais recentemente, digamos, nos anos 90, tem poetas também com ótima pegada, como Caio Meira, Antonio Cicero, Fabrício Carpinejar e Sérgio Nazar, só para citar alguns. Por outro lado, há poetas que, apesar de escreverem bem, fazem com que a erudição e a assepsia exageradas queiram submeter as manifestações das múltiplas intensidades da vida, da linguagem, do pensamento. Um dia, escutei um cara no ônibus, possivelmente um D.J., falando assim: Não deixe que a cultura abafe a realidade!
TRIP O que escolhe: uma luta clandestina do Tyson ou um livro inédito do Pessoa?
PUCHEU Pego o livro e vou à luta.
AS MINHAS AMIZADES DE HOJE SÃO FEITAS COMO ANTIGAMENTE
Estudantes engravatados tomam um chope num botequim do centro da cidade, ao lado do qual se abre, imperceptível, uma porta. As pernas que, por ela, sobem as escadas de madeira pela primeira vez não sabem ao certo o que irão encontrar; algo as move, entretanto, naquela direção: em certos casos, um excesso, em outros, uma ausência. Seus freqüentadores se acostumaram ao fato de que poucos visitantes permanecem entre eles, e não têm expectativas de que seja diferente. De tão velho, o corrimão se afasta de quem quer que se apóie nele. O neófito se recompõe rapidamente. A primeira lição: para entrar ali, conte apenas com sua própria força, mais nada. Pois músculos suados se esquentam, se esbarram, se agridem e se separam em busca do equilíbrio perfeito entre velocidade, potência e inteligência dos reflexos. O menor vacilo custa alguns dentes, um filete de sangue no nariz, uma dor no fígado, no baço, uma falta de ar... e de siso. Pouco falam do que pensam ou sentem. O conhecimento que um tem do outro é passado pelos poros, pelos suores que se misturam a cada esquiva mútua em que a lateral de um corpo se esfrega na mesma lateral malcheirosa do corpo alheio, pela velocidade dos jabs e dos tapas defensivos tirando o punho do caminho da face, pela porrada do explodir da luva nos músculos compactos e protetores. Sim, é dessa maneira que hoje faço meus amigos.
A VOZ DO SANGUE, O SANGUE DA VOZ
Tanto silêncio no ringue, no ringuee na fome, tanto burburinho zoando simultaneamente, que não posso distingui-los. E mesmo antes dos golpes na cabeça, e mesmo antes de qualquer golpe revolvendo as entranhas pelo avesso antes dos 4.500 quilos por impacto), e, mesmo antes, tanto silêncio no ringue, no ringue e na fome, tanto burburinho zoando simultaneamente, que não posso distingui-los.
O ringue é o ringue, a fome é a fome, mas no ringue(como na fome, como na fome do ringue, como no ringue da fome), o silêncio é silêncio e burburinho, e o burburinho, burburinho e silêncio. Quando, no canto do amparo - sentado, curativos imediatos, os segundos trabalhando a meu favor, a respiração em busca de um ponto pacífico -, ouço a voz nítida do treinador se erguendo do alarido da multidão e de ninguém, não a escuto como um mandamento: infiel e pecador, poderia trai-la. Escuto essa vozdesenrolar as últimas ataduras que envolvem o punho do meu coração, espremê-lo ao sumo, ao ponto de o gosto do sangue (de o gosto da fome) brotar espremendo as gengivas por entre os dentes e o protetor, me dando a certeza de que o próximo soar do gongo será o último badalo com o qual meu adversário sonhará antes de beijar a encardida lápide da lona.
ARRANJO PARA ESSES CAMPEÕES DA PALAVRA
Não posso ser poeta, não sei contar histórias... Se eu fosse um toureiro, faria o público acreditar que eu estava a poucos centímetros da morte, mas manteria minha margem de segurança. Foi o que fiz no ringue. Nós, lutadores, compreendemos as mentiras. O que é uma simulação? O que é pensar uma coisa e fazer outra? Os melhores garotos são aqueles que até podem tomar um murro na cara, mas são inteligentes o bastante para não o querer. Quando soa o gongo, somos apenas duas solidões. Não temos medo de apanhar, mas temos medo de perder. Uma derrota no ringue não se compara a nenhuma outra. Eu combatia com qualquer um. Não me interessava quem eram. Era simplesmente indiferente para mim. Eles me batiam, eu não me importava. Quando estou no ringue, luto pela minha vida. A luta pela sobrevivência é a única luta. Por cinco dólares, eles podiam me golpear no queixo com uma marreta. Quem já ficou dois dias sem comer poderá entender. E comer é um vício difícil de largar. Quando se luta, se luta por uma coisa: dinheiro. Acho que o campeão que eu sou hoje é pela dificuldade que eu passei. Nunca fui nocauteado. Já estive inconsciente, mas sempre de pé. Detesto afirmar isso, mas é verdade: quando começa a doer, é quando eu mais gosto desse negócio. Quando vejo sangue, fico como um touro. Sou um animal selvagem, inimigo declarado de toda a raça humana. Uns dizem que sou arrogante, outros, que preciso de uma boa surra, e outros, que falo muito. Mas eu garanto o que digo. Eu não quero nocautear meu adversário... quero golpeá-lo, me afastar e vê-lo ferido. Quero o seu coração. Ele pode fugir, mas não pode se esconder. Tento acertar na ponta do nariz do meu adversário porque tento lhe enfiar o osso no cérebro. Se abrirem minha careca, vão encontrar uma grande luva de boxe. É tudo o que sou. É disso que vivo. Celebridade? Eu? O pessoal lá de onde venho diz que eu sou um vagabundo sortudo que sabe dar uns socos. Quando você não é mais o campeão, está sozinho. Alguns ficam insanos, outros começam a beber, pois o boxe é muito intenso, e muita gente se perde. Você agüenta até certo ponto, depois quebra. Tenho tudo de que preciso: o médico mora aí em frente, o farmacêutico trabalha na esquina; daqui, posso ver a câmara-ardente, e o cemitério é logo ali embaixo na rua.