Pesadelos de uma tarde no centrão

O colunista revive flashes da violência dos cárceres ao caminhar pelo centro de São Paulo

Desci do ônibus e fui subindo, assim distraidamente, até o Viaduto do Chá. Queria comprar uma camisa e tinha a tarde toda para ver as lojas. Quando fui chegando à rua Líbero Badaró, percebi uma movimentação imensa de pessoas. Trombetas soavam alto e aquele mar de gente inundava o viaduto. Imaginei que fosse algum movimento de protesto. Adoro ver o povo brigando com essa gente que manda. É mais do que saudável; é uma necessidade civil. Não somos cordeiros.

Continuei no meu caminho, desviando do povo irado e de seus gritos altos, tentando entender o que reivindicavam. Quando dei por mim, estava bem na frente deles. A cerca de 20 metros de mim, a Tropa do Choque caminhava para dentro daquele tumulto, batendo com os cassetetes nos escudos. Foi um susto enorme. De repente as bombas voavam como pombos sem asas, em direção ao povo. Explodiam ao cair, num som paralisante.

Não sabia o que fazer. O povo corria atropelando quem estivesse na frente. Uma bomba explodiu quase no meu pé. Nem sei como, de repente eu estava no chão, ensurdecido. Um rapaz e uma moça, em uniformes azuis, me levantaram e mandaram que eu corresse. Nem olhei, e dei no pé com o povo. Éramos centenas nos comprimindo pelas calçadas.

Estava em choque. Só pensava em escapar. Atravessei a São João voando e apanhei o primeiro ônibus que, pensei, desceria a avenida. Para meu azar ele subia a rua que eu descera correndo. Pedras começaram a chover nos vidros do coletivo. As bombas explodiam próximas, a Tropa do Choque atrás.

Memórias do cárcere

De repente "voltei" à prisão. Aquilo parecia rebelião com a polícia invadindo, dando tiros, jogando bombas. Segurei nos ferros do ônibus e meti os dois pés nos vidros. Precisava escapar. Toda razão fugira. O vidro apenas estilhaçou e meus pés doeram ao impacto seco. Pulei na porta e furiosamente lutei para abri-la. Não sei se o motorista facilitou ao ver meu desespero pois quando percebi estava caindo na rua. Rolei em pé e já correndo. Desci uma escadaria, trombei com um rapaz que joguei longe e fui passando entre e por cima do povo que fugia.

Somente quando cheguei ao prédio do Correio consegui parar. Olhei para trás, ninguém me perseguia. O povo se dispersara pelo Anhangabaú, mas o som das bombas não cessava. Voltei numa marcha acelerada, limpando minha roupa e o suor que se derramava pelo corpo. Não conseguia ir embora. Tinha que saber o que era aquilo. Não era possível. Estava livre e ainda assim aqueles cães me perseguiam querendo me bater. Voltei ao Viaduto do Chá. Não consegui deixar de voltar.

O sol drapejava uma luz curta e pungente. Minha respiração entrecortava, o coração batia. Os soldados estavam em formação. Em volta, armas engatilhadas para a multidão que agora passava livremente. Passei por eles xingando. Algo em mim me levava a desafiá-los. Acho que queria bater ou apanhar. A minha vida se impunha à razão.

E fui e voltei olhando-os ameaçadoramente. Queria agredi-los, fazê-los sentir minha vontade cega. Havia uma fúria grudada em minha pele, como lágrimas de velas. Eu resistia ao meu próprio medo. Eles tinham me feito correr como um garotinho assustado. Estava humilhado.

Passei por eles mais algumas vezes e cada vez mais ousado. Olhavam-me, sem entender. Estavam disciplinados, cumprindo o condicionamento do comando. Então três deles saíram da formação e vieram para cima de mim. Mais uma vez o instinto de sobrevivência e o medo falaram mais alto. Corri loucamente. Jamais me alcançariam. Quando vi já haviam desistido.

Estava mais leve, vingado. Mostrara minha coragem a mim mesmo. Claro, não poderia com eles, mas os desafiara e dissera tudo o que mantivera preso na garganta por décadas. Estava em paz, vencera a miséria rançosa do medo. A sombra que corria atrás de mim já não me assustava mais.

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