Perdidos e achados

Se nascer é ganhar o abandono, viver é receber presenças

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Penitenciária do Estado de São Paulo, 2002. Eram dez da noite e fazia frio quando a cara do funcionário tomou conta do guichê. Ele vociferou meu nome. Apresentei-me. Comunicou-me que eu estava sendo transferido daquela prisão. Não sabia para onde.
Não havia nada de novo no front. Eu continuava preso e tudo se esvaia em atos ocos e sem sentido. O hábito de sofrer havia concretado as paredes da alma. Já me tornara quase inatingível.
Quando cheguei ao setor de inclusão, já havia bastante gente. O funcionário esclareceu. Estávamos sendo transferidos para a penitenciá­ria de Serra Azul II. Algum burocrata decidira inaugurar uma penitenciária para os presos mais velhos. Os nascidos de 1952 para trás seriam transferidos para lá.


Os companheiros foram chegando. Nos conhecíamos de largos e longos anos. Éramos remanescentes de uma geração que se extinguia. Desesperos ocultavam-se por trás de olhos sofridos. Inaugurar prisão era roubada. Só havia esquema de segurança, mais nada. Não há assistência judiciária, social, escola, religião, trabalho, nada. Somente depois de várias rebeliões as reivindicações seriam ouvidas e a prisão seria equipada de acordo com a lei.


Passamos a noite jogados no chão do xadrez do setor de inclusão. Lembramos amigos que começaram conosco o caminho das pedras e sucumbiram. Pela manhã, a humilhação de praxe. Homens velhos, pelados, mostrando a bunda. Aquela falta de respeito agredia frontalmente. Não por mim. Era atleta, forte e resistente. Mas pelos velhinhos submetidos por garotões fardados. A viagem no camburão foi eletrizante. Chegamos meio mortos, atordoados.

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Quando fui transferido de prisão com companheiros mais velhos, o poder me esqueceu, mas os amigos me resgataram e me ensinaram que viver é receber a presença do outro

 

Fomos colocados em fila indiana e obrigados a entrar correndo. Os velhinhos não conseguiam. Paramos e andamos lentamente, debaixo de ofensas, pauladas e pontapés dos guardas. Rapidamente tomaram nossos dados e nos jogaram nas celas. Olhei e me assustei. Havia quatro treliches. Nós, os mais novos, fomos para as camas de cima. As de baixo seriam dos velhinhos. O pátio de recreação, em frente à grade, era reduzidíssimo. Aquela era uma penitenciária compacta. O pouco espaço que havíamos conquistado em décadas de sofrimento na prisão estava extinto.


Éramos 16 homens naquela cela. Passou uma semana e nada. Acabou tudo o que conseguíramos levar: cigarros, comestíveis e artigos de higiene. Tudo era dividido naturalmente. Vários fumavam um cigarro único. Eu olhava fotos, escrevia cartas para a namorada e para os amigos que ficaram em São Paulo. Não estávamos recebendo nenhuma informação do mundo exterior. Havíamos sido esquecidos.

 

Parte da família
De repente, um guarda chamou meu nome pela grade. Trazia enorme sacola de comestíveis e a primeira carta que entrava no presídio. Era ela, a namorada. Leite em pó, sucos, açúcar, bolachas, cigarros... Acariciei tudo com os olhos e liberei para o povo se alimentar. Mandamos pratos com bolachas e alguns cigarros para todas as celas do nosso raio. Os olhos dos velhinhos brilhavam. Era a presença do mundo que retornava.


Dias depois, começaram a chegar cartas e pacotes pelo correio. As famílias haviam conseguido nos localizar. O pessoal da Trip mandou caixa com revistas, livros, material de escrita e um recado: eu fazia parte da família Trip. A Companhia das Letras mandou livros e um bilhete prestando todo apoio do mundo. Fernando Bonassi, o amigo, enviou livros, solidariedade e apoio financeiro, caso necessitasse. Quando menos esperava, fui chamado na diretoria e lá estava o amigo Julio. Viera da Bahia para me visitar. Alegria sem tamanho recebê-lo naquelas circunstâncias.


De repente já fazíamos parte do mundo novamente. Se nascer é ganhar o abandono, viver é receber presenças; celebrar o prazer máximo que é poder ser com os outros. O que seria de nós sem eles?

*Luiz Alberto Mendes, 56, é autor de Memórias de um sobrevivente, sobre os 31 anos e 10 meses que passou na prisão. Seu e-mail é lmendes@trip.com.br

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