Penalidade máxima

por Caio Ferretti
Trip #189

Por dez anos Monarca e Valdemar foram cartolas da Federação de Futebol do Carandiru

Por dez anos Monarca e Valdemar foram cartolas da FIFA, a Federação de Futebol do Carandiru. Depois de anos sem contato, Trip os coloca frente a frente para contar como o amor ao esporte ajudou os detentos a sobreviver no inferno

Monarca conferiu o relógio. Faltavam pouco mais de 15 min para terminar o jogo no campo do pavilhão nove, na Casa de Detenção do Carandiru. Era dia de campeonato, daqueles em que todos apareciam, e ele estranhou quando os detentos começaram a abandonar a partida antes do fim. Uma confusão iniciada no segundo andar do pavilhão havia crescido. Todos corriam para o interior do prédio, onde ficavam as celas. Não demorou muito e o campo ficou vazio. Sozinho, Monarca cumpriu a função que lhe restou. Recolheu as redes dos gols, pegou a bola e caminhou para a entrada do pavilhão. O tumulto já estava instalado. Até então ele não sabia muito bem o motivo, mas o nove estava em plena rebelião.

Era dia 2 de outubro de 1992 quando a tropa de choque da polícia militar invadiu o prédio, pouco após o início do motim. Fechado em sua cela, Monarca ouvia o barulho dos tiros e das bombas que estouravam no confronto. Até que sua porta de ferro foi aberta. De cabeça abaixada, viu os pares de coturnos se aproximarem. “Aqui tem drogas ou armas?”, perguntaram. “Não, senhor, aqui trabalhamos com esporte. Se o senhor quiser, pode olhar pra debaixo da cama. Tem bola e rede”, respondeu. “Que esporte o quê! Vou voltar aqui pra conferir.” Mas não voltou. E Monarca desconfia do porquê. “Acho que o esporte salvou minha vida aquele dia”, diz. Cento e onze detentos não tiveram a mesma sorte. Assim como o futebol o salvou, também ajudou muitos outros presidiários a suportar anos e anos dentro da maior casa de detenção da América Latina. Uma realidade que José Isabel da Silva Filho, nosso Monarca, experimentou intensamente. Por quase uma década, ele presidiu a Fifa (no caso do Carandiru, a Federação Interna de Futebol Amador) e comandou o esporte mais praticado dentro da penitenciária.

 

“O preso esquece que está dentro de uma cadeia. Ele vibra como qualquer pessoa que está no Pacaembu”

O envolvimento de Monarca com o futebol na prisão começou meio por acaso. Era 1989, “dia de sol quente”, recorda-se, e ele procurava só um passatempo. Alguns internos trabalhavam na reforma do campo do pavilhão nove, coordenado por Valdemar Gonçalves, funcionário do presídio considerado o diretor de esportes da instituição. “Naquele mesmo dia, seu Valdemar me perguntou: ‘Por que você não começa a trabalhar com nós, do esporte?’”, conta. “Eu tinha medo, esporte de cadeia é complicado porque mexe com a massa carcerária. Não podia ter rabo preso com ninguém. Se o cara puxasse minha folha corrida, ela tinha que sair branquinha, ninguém podia ter nada pra falar.” Monarca titubeou, mas aceitou o convite. Mal sabia que, em pouco tempo, ocuparia o cargo mais importante na cartolagem do Carandiru.

Uma posição que, por sinal, não era fácil de conquistar. Todo mês de janeiro havia eleições na Casa de Detenção. Cada pavilhão tinha uma liga de futebol chefiada por um presidente, eleito pelos times. Os representantes das ligas, por sua vez, escolhiam quem seria o comandante da Fifa, função que Monarca exerceu por vários anos durante a década de 90. Mas o que era preciso para chegar ao cargo máximo? Valdemar responde: “Precisava de prestígio. E prestígio no meio da malandragem é uma coisa difícil. O cara tem que ser bom ladrão, adotar um comportamento ilibado, não pode ter uma mancha no histórico. É um bandido que neguinho olha e respeita”.

Ou seja, um curriculum vitae extenso, necessário para manter sob controle uma liga de presidiários que chegou a ter perto de cem equipes. Vamos à escalação: além do presidente, a Fifa do Carandiru tinha o diretor técnico, o diretor de árbitro, o diretor de patrimônio (que cuidava do material usado nos jogos), o estafeta (que levava informativos e inquisições aos pavilhões) e o secretário-geral (responsável por escrever as atas). E ainda existiam algumas outras atribuições especiais. “Tinha um cara específico só para colocar e tirar as redes na hora do jogo.” Por que, Valdemar? “De repente alguém pega essas redes e joga na muralha. E aí?”, explicando como alguém poderia escapar do Carandiru.

 

“Pra apitar na cadeia tinha que ter saco roxo, senão a malandragem batia na orelha”

Unidos pela Copa
Não era só o futebol organizado pela Fifa do Carandiru que distraía os detentos. A Copa do Mundo parava o presídio. Monarca sabe bem disso, viu sete delas atrás das grades. Preso em 1975 por assaltos, recebeu penas que, somadas, ultrapassaram 50 anos. Teve a ficha limpa depois de cumprir 29 anos, sendo 27 na Casa de Detenção. Tempo suficiente para ver do presídio as Copas de 1978, 1982, 1986, 1990, 1994, 1998 e 2002.

Encarcerado, viu surgir fenômenos como Zico, Sócrates, Romário, Rivaldo e Ronaldo. E acompanhou a entrada da TV na detenção. “Em 1978 ainda não tinha televisão na cadeia, mas o diretor da época colocou umas no pátio pra gente ver os jogos do Brasil. Quando acabava, todo mundo tinha que subir pra cela. Depois, em 1982, o diretor era mais flexível e deixou colocar televisão nos andares. Cada andar do pavilhão tinha algumas TVs. Aí, em 1986, a televisão já estava dentro da cela. Mas não era todo mundo que tinha. Quem podia colocava a TV virada na janela, pro pessoal das outras celas também ver.”

Eram momentos em que o presídio todo, com lotação que chegou a 7 mil internos, se unia. “Nessas horas, o preso esquece que está dentro de uma cadeia. Ele vibra como qualquer pessoa que está no Pacaembu, no Morumbi”, reflete Monarca. E como eram as comemorações? “Pense num Corinthians e Palmeiras no estádio. Quando um desses times faz gol, imagina o barulho. No presídio é mais ou menos a mesma coisa, parecia que o prédio ia cair.”

 

“Esporte de cadeia é complicado porque mexe com a massa carcerária. Não podia ter rabo preso”

Bifão VIP
Mas o Carandiru tinha outra seleção que jogava sempre em casa e não cobrava ingresso. Valdemar explica: “Esse time era assim: o presidente de cada liga escolhia os melhores jogadores do seu pavilhão. O grupo era formado e colocado para treinar. E esses caras tinham tratamento VIP. Em dia de jogo, tomavam suco de leite com cenoura batida e comiam bife. Era refeição especial”. E funcionava? “Houve uma época em que ficamos três anos sem perder. Tinha jogador ali que, se não tivesse tomado o caminho errado, poderia jogar em qualquer time grande.” Os jogos eram contra equipes de fora, normalmente da várzea paulistana. Mas times profissionais também chegaram a pisar no terrão do Carandiru. Foi o caso da Portuguesa, de jogadores famosos como Rodrigo Fabri e Leandro Amaral, que bateram bola ali no fim da década de 90.

Como juiz não é exatamente um cargo querido entre detentos, não podia existir máfia do apito. O diretor de árbitros da Fifa era responsável por circular nos jogos de todos os pavilhões avaliando o trabalho de quem apitava. “Pra apitar na cadeia tinha que ter saco roxo, senão a malandragem batia na orelha”, diz Valdemar. “Tinha um, o Calão Maravilha, que apitava jogo em qualquer pavilhão e ninguém falava nada. A cadeia tinha um respeito enorme por ele. E, se houvesse agressão ao juiz, o jogador era punido. Ficava dois, três meses sem jogar.”

 

Bons momentos
Valdemar e Monarca estavam ansiosos para o reencontro. Desde que ganhou a liberdade, há cinco anos, o ex-presidente da Fifa não tinha contato com o funcionário que lhe colocou no esporte da cadeia em 1989. Monarca, aos 59 anos, foi encontrado pela reportagem da Trip vendendo folhas de recibo para taxistas nos arredores do aeroporto de Congonhas. Valdemar, após duas décadas no Carandiru, hoje trabalha num presídio feminino na zona norte de São Paulo.

“Pra comandar a fifa precisava ter prestígio no meio da malandragem. E isso é uma coisa difícil"

A convite da reportagem, os dois se encontraram no Parque da Juventude, local que abrigava os pavilhões da Casa de Detenção antes de serem demolidos. Durante as quase quatro horas em que estiveram juntos, não ficaram em silêncio um só minuto, relembrando histórias que viveram juntos naquele espaço já tão modificado. Monarca, enquanto caminhava para ir embora do local, desta vez sem ter que passar por nenhuma grade ou portão de ferro, refletia: “Ninguém que ficou tanto tempo preso como eu tem saudade da cadeia. Mas passei bons momentos aqui dentro...
E muitos foram por causa do futebol”.

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