Peixe fora d'água

por Henrique Goldman
Trip #120

Nosso colunista-viajante descobre que viveu a vida como as tartarugas oceânicas

Hoje acordei de manhã e, na confusão do sono, pensei que estava na casa dos meus pais no bairro do Bom Retiro, onde cresci, em São Paulo. Comecei a lembrar do dia 12 de abril de 1982, quando meus pais me levaram de carro até o aeroporto de Viracopos, em Campinas. Peguei um vôo da LAP, Lloyd Aereo Paraguayo, com destino a Nova York, fazendo escala em Assunção.

Minha passagem era de ida e volta, mas eu já sabia que estava indo em-bora para sempre. O jantar a bordo foi uma inesquecível marmita com espaguete e almôndegas. Eu tinha 21 anos, quinhentos dólares no bolso e uma vontade absurda de viver longe dos meus pais e da minha casa. Longe da minha língua.

Na verdade, eu já tinha ido embora de casa antes disso. Em 1977, quando tinha 16 anos e a cara coberta de espinhas, voltei das férias passadas em Canoa Quebrada (CE) sem conseguir encarar os meus pais, que me pressionavam para estudar, cortar o cabelo e parar de fumar baseado.

Vendi o meu som e fugi de carona para o Nordeste. Passei dez meses perambulando entre Salvador e Manaus. Pedi comida nas portas das casas, vendi bagulho, fiz uns michezinhos e fui preso pela Febem em Fortaleza. Quando voltei para São Paulo, magro como um sobrevivente de guerra e com o corpo coberto de sarnas para me coçar, já era um homem.

Ao contrário de tantos brasileiros que tentam a sorte no exterior, eu não era um imigrante econômico. Meu pai tinha grana até para bancar uma relativa mauricice. Abandonei a proteção da minha família para passar fome em Nova York. Em vez de ir à faculdade, fui sorveteiro, garçom, pintor de parede e mensageiro. Comecei minha carreira de cineasta fazendo vídeos de batizados e casamentos.

Bye, bye, Brazil

Por que eu queria tanto ir embora? Acho que estava procurando o meu lugar neste mundo e, em casa, não me sentia em casa. Como judeu, nunca consegui me sentir totalmente brasileiro. Nunca soube sambar ou dançar forró. Na infância, sonhava em ser goleiro do Santos, mas sempre fui muito frangueiro.

Até que eu fingia, mas não conseguia ter a leveza de espírito, o frescor que eu invejava tanto nos meus amigos brasileiros. Era como se eles fossem uma saladinha leve de rúcula consumida na praia de Ipanema e eu, um ensopado de vitela indigerível na casa da minha tia-avó no Belenzinho.

Não me sentia em casa entre os judeus também. Não gosto do racionalismo exagerado e do gosto de antibiótico com cebola frita da religião. No Clube Hebraica, me sentia meio negão. Eu era um peixe fora d'água também entre os peixes que já estavam fora d?água. Depois de quatro anos em Nova York, me mudei para Roma, onde vivi sete anos tentando em vão virar italiano.

De Roma me mudei para Londres e, trabalhando, passei anos viajando por todos os continentes. Por onde es-tive, carreguei nas costas essa bagagem pesada e incômoda, essa sensação dolorida de não pertencer a lugar algum. Me sentia exilado no meu próprio corpo.

Hoje não me sinto mais assim. Acho que porque me casei e, como diz o Talmud**, "a casa de um homem é a sua mulher". Com o tempo, percebi que tudo o que abandonei quando saí do Brasil se aproxima de mim cada vez mais, como um destino inelutável. A língua portuguesa é também cada vez mais um colo materno. Não conseguiria chamar a Debi, minha mulher, que é inglesa, de "darling", "sweetheart", "baby" ou "honey".

Para mim, amor em qualquer outra língua é travado e meio falso - como uma tradução mal-feita. Nada como "boneca" ou "lindinha". Quando vou ao Brasil, reparo que os próprios paulistas se assustam com a minha cabeça e o meu sotaque, cada vez mais exageradamente paulistas. Nem me assusto mais quando me olho no espelho e encontro o meu pai.

As tartarugas oceânicas também são assim: passam a vida longe de casa, mas atravessam oceanos inteiros só para desovar na mesma praia onde nasceram.

**Talmud: um dos livros básicos da religião judaica, contém as leis, a doutrina, a moral e as tradições dos judeus.

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